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Irreduções (Parte 3), por Bruno Latour

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“Rift”, por Andrea Myers, 2009

Por Bruno Latour
Tradução: Lucas Faial Soneghet

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O texto a seguir continua a série de traduções cuja primeira parte pode ser encontrada aqui e a segunda aqui. 

CAPÍTULO 2 – SOCIOLÓGICAS

2.1.1 Todo raciocínio tem a mesma forma: uma frase segue a outra. Então uma terceira afirma que estas são idênticas mesmo que elas não se pareçam. A partir de então, a segunda é usada no lugar da primeira, e uma quinta afirma que a segunda e a quarta são idênticas mesmo que… e assim vai, até que uma frase é deslocada enquanto finge não se mover, e traduzida enquanto finge permanecer fiel.

2.1.2 Dedução não é algo que exista. Uma frase segue a outra, então uma terceira afirma que a segunda estava implicitamente ou potencialmente já dentro da primeira (1.5.1).

  • Aqueles que falam de julgamentos sintéticos a priori ridicularizam os fiéis que se banham no santuário em Lourdes. Entretanto, não é mais bizarro dizer que há sacralidade na água do que dizer que a conclusão está nas premissas.

2.1.3 Quando muitas frases foram tornadas equivalentes, todas elas são dobradas de volta na primeira, e sobre ela dirão que “implica em todas”. Então, essa frase é levada pra todo canto, e dizem que todas as outras podem ser extraídas dela “por pura dedução”.

2.1.3.1 Aqueles que argumentam na frente dos outros e dizem que extraem uma frase de outra são, na melhor das hipóteses, malabaristas e na pior das hipóteses, trapaceiros. Por anos eles vêm praticando seus truques usando coelhos e chapéus emprestados da plateia.

2.1.3.2 Só professores dizem saber extrair uma frase da outra por meio de “dedução formal pura”. Eles sabem de antemão a conclusão do argumento que dizem estar desdobrando. Argumentos organizados que foram aprendidos lentamente e em desordem são desdobrados por eles rapidamente, um após o outro, escondendo o que aconteceu por trás do palco, atrás do quadro negro, a história tumultuosa que levou essa proposição a ser ligada a outra. Eles oferecem aquilo que contem in potentia todas as consequências para a adoração de seus pupilos, que acreditam fervorosamente que eles deduziram uma coisa da outra.

  • Sem educação escolar, ninguém teria fé nessa religião da dedução. Poderíamos muito bem dizer que as proposições da Ética de Spinoza estão “todas dentro” da primeira proposição, ou que a sobremesa está contida na entrada. Mas estudantes sempre estiveram fascinados com o princípio de Laplace: ter todo o conhecimento na palma da mão, havendo o extraído do calcanhar de seus pés.

2.1.4 Argumentos formam um sistema ou estrutura somente se esquecermos de testá-los. O quê? Se eu atacasse um elemento, todos os outros viriam me cercar sem hesitação? Isso é tão improvável! Toda coleção de actantes inclui preguiçosos, covardes, agentes duplos, sonhadores, indiferentes e dissidentes. Sim, eu concedo que o medo de ver A, B ou E correndo para o resgate pode impressionar tanto as pessoas que elas desistem. Mas se eles aguardarem, há chances que B será dissociado, porque C vem muito devagar, E está deprimido, F é um traidor, e G foi incapaz de ajudar porque estava tentando parar a traição de F.

  • Como é bem sabido, a aliança entre lógicos e o exército levaram o General Strumm a colocar a teste a solidez das estruturas na livraria em Vienna (Musil, ch. 85). Ele se decepcionou. Em Paris, ainda acreditamos em estruturas porque temos o cuidado de não testar a lealdade delas.

2.1.5 Comentários nunca são fiéis. Ou há repetição, o que não é comentário, ou há comentário, que é dito diferentemente. Em outras palavras, há tradução e traição. Apesar disso, exegetas nunca se cansam de colocar brilhos no texto. O texto é enriquecido com todos os brilhos que deve conter “in potentia” para justificar todas aquelas leituras.

  • Textos nunca são fieis uns aos outros, mas estão sempre a alguma distância.

2.1.6 Nós dizemos “aquele que controla a causa, controla o efeito”, como se o efeito estivesse potencialmente contido na causa. Entretanto, nenhuma palavra pode causar outra. Palavras seguem umas às outras numa história. Só posteriormente na história que um personagem é feito de “causa” e outro de “consequência”. O único efeito a ser considerado é o efeito que essa ou aquela aliança das palavras tem no público: “Não, ele está exagerando”, ou “está bem escrito”, ou ainda, “muito esclarecedor”, “muito convincente”, “quão presunçoso”, ou “que tedioso”.

2.1.7.1 Em teoria, teorias existem. Na prática, elas não existem.

  • Ninguém nunca deduziu toda a geometria dos axiomas e postulados de Euclides de Alexandria. Mas, “em teoria”, eles dizem, “qualquer um em qualquer lugar” deriva “a totalidade da” geometria “a qualquer momento” baseando-se “somente” nos axiomas de Euclides. Na prática, isso nunca aconteceu com ninguém. Mas ninguém nunca precisou chegar a essa conclusão, porque “em teoria” o oposto permanece possível. E feiticeiros são zombados porque disseram que eles são incapazes de aceitar fatos mesmo quando fatos os contradizem todos os dias por séculos!

2.1.7.2 Não há metalinguagem, só infralinguagens. Em outras palavras, só existem outras linguagens. Não podemos reduzir uma linguagem a outra, tanto quanto não podemos construir a torre de Babel.

  • Aqueles que falam de metalinguagem devem estar se referindo, eu acho, ao patois dos mestres que é pobre demais até para traduzir o que é conversado na cozinha.

2.1.7.3 A prática diária não necessita de teóricos para revelar sua “estrutura subjacente”. A “consciência” não subjaz a prática, mas é algo diferente em outro lugar e em outra rede. Não falta nada à prática.

  • Onde estão as estruturas inconscientes dos mitos primitivos? Na África? No Brasil? Não! Elas estão entre os cartões de referência no escritório de Lévi-Strauss. Se elas se estendem além do Collège de France na rua das Écoles, fizeram isso por meio de livros e discípulos. Se elas forem encontradas na Bahia ou em Libreville, é porque foram ensinadas lá.

2.1.8 No que diz respeito à forma (2.1.1), todos os argumentos são igualmente bons. Tudo que precisamos é uma série de frases e então dizemos que uns são iguais e outros diferentes (2.1.2). As frases são costuradas em entrançados, tranças, guirlandas, grinaldas e teias. Isso sempre pode ser feito, não é? Como resultado, certos movimentos ficam mais fáceis e outros mais difíceis.

  • Ninguém pode classificar argumentos em termos de suas qualidades formais. Se você insistir, podemos ranquear argumentos em termos de suas qualidades materiais.

2.1.8.1 Nada é por si mesmo lógico ou ilógico. Um caminho sempre vai para algum lugar. Tudo que precisamos saber é aonde vai e para que tipo de tráfego. Quem seria tão tolo a ponto de chamar rodovias de “lógicas”, estradas de “ilógicas” e trilhas de “absurdas”?

2.1.8.2 Nenhum conjunto de frases é por si mesmo consistente ou inconsistente (1.1.14); tudo que precisamos saber é quem prova com quais aliados e por quanto tempo. Consistência é sentida (1.1.2); não é um diploma, uma medalha ou uma marca registrada.

2.1.8.3 O fio do argumento nunca é reto. Aqueles que falam de “lógica” nunca observaram como algo é tecido, entrançado, ranqueado, entrelaçado ou deduzido. Uma borboleta voa numa linha mais reta do que a mente que raciocina. (Às vezes, é claro, padrões trançados podem representar uma linha reta que é bonita de se ver.)

2.1.8.4 A “razão” é aplicada ao trabalho (2.5.4) de alocar concordância e discordância entre palavras. É uma questão de gosto e sentimento, know-how e conhecimento, classe e status. Nós insultamos, franzimos o cenho, fazemos careta, cerramos os punhos, nos entusiasmamos, cuspimos, suspiramos e sonhamos. Quem raciocina?

  • Um antropólogo da linguagem corporal poderia rascunhar o pensamento de um dom de Cambridge ou de um banqueiro de Wall Street.

2.1.9 Já que a quantidade de identidades e diferenças que temos que compartilhar permanece constante (2.1.8), não temos a capacidade de ser ilógicos ou irracionais (2.1.8.1). Ainda assim, há muitos jeitos de alocar “em consequência”s, “por causa de”s, “em contradição a”s e “embora”s. Ninguém está mais atento a “non sequiturs” do que lógicos, bruxos ou administradores estatais. Quando efeitos têm que ser planejados, temos que escolher o que seguirá o que com muito cuidado. Nós temos que decidir quando o nome do traidor ou do axioma será revelado e preparar-nos para a entrada que vai impressionar mais a plateia. Temos que determinar unidades de tempo e espaço, causas e princípios. Temos que escolher escrever “mais geométrico” ou “mais populo” enquanto selecionamos com gosto os teoremas e apartes. Em suma, convicção depende do gênero que escolhemos.

  • Estamos esquecendo que há tantos céticos, raciocinadores, popperianos e racionalistas entre os Azande quanto há entre os Copérnicos e Szilards. Já que a quantidade de concordâncias e discordâncias é constante, nós não podemos separar de maneira limpa as ficções míticas das descrições científicas. Isso só pode ser feito de forma suja e então acabamos com um verdadeiro açougue. Um pintor que só escolhe tons de cinza não é menos pintor do que aquele que usa cores brilhantes. Há provas tão rigorosas como o inverno e há provas primaveris, mas elas são provas ainda assim.

2.1.10 Já que nada é inerente a nada, a dialética é um conto de fadas. Contradições são negociadas como todo o resto. Elas são construídas, não dadas.

2.1.11 Se a mágica é o corpo de práticas que dá a certas palavras a potência de agir em “coisas”, então o mundo da lógica, da dedução e da teoria devem ser chamados de “mágicos”: mas é a nossa mágica.

  • Assim como os gregos chamaram os idiomas finos dos partianos, os abissinianos, ou os sarmatanos de “barbáricos”, nós chamamos os argumentos perfeitos (2.1.8) daqueles que acreditam em poderes de dedução de “ilógicos”.

2.2.1 Dizer algo é dizer outra coisa. Em outras palavras, é traduzir.

  • Uma palavra é colocada no lugar de outra que não parece com ela. Uma terceira palavra diz que elas são a mesma coisa (2.1.1). A não é A, mas B e C. Roma não é mais Roma, mas em Creta e entre os Saxões. Isso se chama “predicação”. Ou seja, não se pode falar corretamente, indo do mesmo para o mesmo, mas sempre mal, indo do mesmo para o outro.

2.2.2 Já que nada é redutível ou irredutível a qualquer outra coisa (1.1.1) e não há equivalências (1.2.1), cada par de palavras deve ser visto como idêntico ou como não tendo nada em comum. Então, não há jeitos claros de distinguir significados literais de figurativos (Hesse, 1974). Cada grupo de palavras pode ser sujo, exato, metafórico, alegórico, técnico, correto ou falso.

2.2.3 Nada é por si mesmo “dizível” ou “indizível”. Tudo é traduzido (1.2.12). Já que uma palavra empresta seu sentido para outra da qual, no entanto, se difere, temos tanta responsabilidade de falar de forma correta ou errônea do que de impedir o pequeno moinho do conto de fadas de moer nosso sal.

2.2.4 Ou a mesma coisa é dita ou nada é dito. Ou algo é dito, mas esse algo é outra coisa. Uma escolha deve ser feita. Tudo depende da distância que estamos preparados para cobrir e das forças que estamos preparados para coagir enquanto tentamos fazer equivalentes palavras que são infinitamente distantes.

2.2.5 Podemos ser entendidos, ou seja, cercados, desviados, traídos, deslocados, transmitidos, mas nunca somos bem entendidos. Se uma mensagem é transportada, então ela é transformada. A difusão “simples” nunca se distingue da mensagem “pura”.

2.3.1 Nunca começamos a falar em palavras que se associam livremente, mas sim na nossa língua materna (2.2.2).

  • Outras pessoas já brincaram com as palavras antes de começarmos a falar (1.1.10). Ano após ano, século após século, outros fizeram certas associações de sons, sílabas, frases, e argumentos possíveis ou impossíveis, corretos ou barbáricos, apropriados ou vulgares, falsos ou elegantes, exatos ou sem sentido. Embora nenhum desses grupos seja tão sólido como dizem (2.1.4), se desejarmos desfazê-los ou refazê-los, nos tornamos o objeto de golpes, notas ruins, carinhos, tiros ou aplausos.

2.3.2 Embora não exista significado apropriado ou figurativo, é possível se apropriar de uma palavra, reduzir seus significados e alianças, e liga-la firmemente ao serviço de outra.

  • Ainda assim, nem todos os perfumes da Arábia adocicaram essa pequena metáfora para assim torná-la figurativa (2.2.2)

2.3.3 Todas as associações de sons, de palavras e de frases são equivalentes (2.1.8), mas visto que elas se associam justamente para que não sejam mais equivalentes (1.3.6), no final há vencedores e derrotados, fortes e fracos, sentido e sem sentido, e termos que são literais e metafóricos.

2.3.4 Nada é por si só lógico ou ilógico (1.2.8), mas nem tudo é igualmente convincente. Só existe uma regra: “Tudo vale”; diga qualquer coisa desde que aqueles para os quais você fala se convençam. Você diz que para ir de B para C tem que passar por D e E? Se ninguém mais erguer sua voz para sugerir outros caminhos, então você foi convincente. Eles vão de B para C pelo caminho sugerido mesmo que ninguém queira sair de B e ir para C, e mesmo que haja muitas rotas diferentes para se adotar. Aqueles que você buscou convencer, aquiesceram. Para eles, não há mais “Tudo vale”. Isto tem que bastar, porque você nunca conseguirá algo melhor (1.2.1).

2.3.5 Podemos dizer o que quisermos, e ainda assim não podemos. Assim que falamos e juntamos palavras, outras alianças se tornam mais fáceis ou mais difíceis. A assimetria cresce com a inundação das palavras; enquanto significados fluem, declives e planos logo são erodidos. Alianças são formadas entre palavras no campo de batalha. Somos acreditados, somos detestados, somos ajudados, somos traídos. Nós não temos mais controle do jogo. Alguns significados são sugeridos, enquanto outros são retirados; somos comentados, deduzidos, entendidos ou ignorados. É isso: nós não podemos mais dizer o que quisermos.

2.4.1 Como uma série de frases se torna tão mais “forte” que outra a ponto da segunda se tornar “ilógica”, “absurda”, “contraditória”, “fictícia” ou “infantil”? Assim como uma força (1.3.2), um argumento fica mais forte somente usando o que tem em mãos. Assim podemos forçar um actante a confessar que essa ou aquela frase é “contraditória” ou “absurda”, até que não possamos mais achar alguém que torne o argumento ilógico de novo.

  • A retórica não pode explicar a força de uma sequência de frases porque, se ela é chamada de “retórica”, então é fraca e já perdeu (1.3.6). A lógica não pode explicar a força, pois atribui a vitória que resulta de certas frases a qualidades “formais” comuns a todos os argumentos (2.1.0). Entretanto, a semiótica continua a ser inadequada porque insiste em considerar somente textos ou símbolos em vez de lidar também com “coisas em si mesmas”.

2.4.2 Palavras nunca são encontradas sozinhas, nem cercadas somente por outras palavras; assim elas seriam inaudíveis.

  • Um actante pode se aliar a qualquer coisa, visto que nada é por si mesmo redutível ou irredutível (1.1.1) e não há equivalência sem o trabalho de fazer algo equivalente (1.4.0). Uma palavra pode assim entrar numa parceria com um significado, uma sequência de palavras, uma afirmação, um neurônio, um gesto, uma parede, uma máquina, um rosto… qualquer coisa, desde que diferenças em resistência permitam que uma força se torne mais durável que outras. Onde está escrito que uma palavra pode se associar só com outras palavras? Cada vez que a solidez de uma cadeia de palavras é testada, estamos medindo a ligação de paredes, neurônios, sentimentos, gestos, corações, mentes e carteiras – ou seja, uma multidão heterogênea de aliados, mercenários, amigos e cortesãs. Mas não podemos defender essa impureza e promiscuidade.

2.4.3 Não é possível distinguir entre aqueles momentos em que temos força e aqueles em que estamos certos.

  • Provas de força só tomam a forma de uma demonstração de força às vezes (1.1.2); elas também aparecem de outras formas. Num extremo os actantes operam tão pacificamente que desaparecem no pano de fundo e se tornam o fluxo da natureza. Sua ação é tão pacífica que nenhuma força parece estar sendo exercida (1.1.6). No outro extremo há derramamento de sangue – guerra total sem ritual, propósito ou preparação. Isso acontece? Acredito que em algum lugar no meio está o grande jogo da retórica, onde a força da palavra pode balançar alianças e demonstrar alguma coisa, onde muito, muito raramente, com tudo mais sendo igual, alguém fala e convence.

2.4.4 Linguagens não dominam nem são dominadas, não existem nem não existem. Elas são enteléquias como todas as outras. Elas buscam aliados quando é conveniente e constroem um mundo todo a partir deles com as mesmas proibições e privilégios de outros actantes.

  • Só a linguística pode acreditar que palavras se associam somente com outras palavras para fazer uma estrutura linguística. Eles esquecem a dificuldade que tiveram ao desacoplar palavras de seus aliados quando inventaram suas estruturas. O fato de que palavras são forças como todas as outras, com seus tempos e espaços, seu “habitus” e suas amizades, só é surpreendente para aqueles que acreditam que “homens” existem ou dominam linguagens. Você nunca lutou com uma palavra? Sua língua não se endureceu de tanto falar? Qualquer coisa que resiste é real (1.1.5). Quem poderia acreditar que palavras tem sua própria história?

2.4.5 Não é possível distinguir por muito tempo entre aqueles actantes que vão desempenhar o papel de “palavras” e aqueles que vão desempenhar o papel de “coisas”. Se falarmos só de linguagens e “jogos de linguagem”, já perdemos, porque estávamos ausentes no momento em que papeis e fantasias foram distribuídas.

  • Recentemente há uma tendência a privilegiar a linguagem. Por muito tempo pensou-se que a linguagem era transparente e estava sozinha entre actantes por ser a única que não possuía densidade ou violência. Então começaram a surgir dúvidas sobre sua transparência. Expressou-se esperança de que a transparência poderia ser restaurada ao limpar a linguagem como se limpa uma janela. A linguagem foi tão privilegiada que sua crítica se tornou a única tarefa digna para gerações de Kants e Wittgensteins. Então, na década de 1950, percebeu-se que a linguagem era opaca, densa e pesada. Essa descoberta, porém, não significou perda de seu status privilegiado, nem a levou a ser equalizada as outras forças que traduzem e são traduzidas por ela. Do contrário, tentaram reduzir todas as outras forças ao significante. O texto foi transformado no “objeto”. Esta foi a década de 1960, de Lévi-Strauss a Lacan por meio de Barthes e Foucault. Que rebuliço! Tudo que é dito sobre o significante está certo, mas também deve ser dito sobre todos os outros tipos de enteléquia (1.2.9). Não há nada especial sobre a linguagem que permita que ela seja distinguida do resto por qualquer período de tempo.

2.4.6 A consistência de uma aliança é revelada pelo número de atores que devem ser ajuntados para separá-la (2.1.8.2). Sendo assim, temos que coloca-la a prova se quisermos saber com o que estamos lidando – se quisermos saber realmente de onde vem a eficácia sempre atribuída a uma palavra isolada, um texto solitário ou um sinal dos céus.

  • Eles dizem, “Você não pode ir de B para D sem passar por C ou E.” “Se você está incerto sobre C, então você também tem dúvidas sobre B e D.” “Se você está em B, você deve ir para D.” Cada uma dessas afirmações pode servir igualmente bem para um problema de geometria, uma genealogia, uma rede subterrânea, uma briga entre marido e mulher ou a pintura envernizada de uma canoa. Cada uma pode ser dita de qualquer forma durável (1.1.6). É por isso que “lógica” é um ramo das obras públicas (1.4.4). Não podemos dirigir um carro no metrô assim como não podemos duvidar das leis de Newton. Os motivos são os mesmos em cada caso: pontos distantes foram ligados por caminhos que eram estreitos a princípio, e então foram ampliados e pavimentados. Atualmente, nada menos que uma revolução ou um cataclisma natural poderia levar aqueles que usam esses caminhos a sugerir outra rota para o viajante. Uma lógica é destruída pela outra, da mesma forma que um trator destrói um barraco. Não há nada miraculoso sobre esse deslocamento, mas ele pode ser perigoso se os expropriados se vingarem.

2.4.7 As alianças heterogêneas que fazem certas cadeias de palavras coerentes (2.1.8.0) formam redes que podem ser muito longas e incomensuráveis – a não ser que elas escolham medir umas as outras. “Você pode duvidar dos links que ligam B a C?” “Não, não posso, a não ser que eu esteja preparado para perder minha saúde, meu crédito ou minha carteira.” “Você pode afrouxar os laços que amarram D a E?” “Sim, mas só com o poder do ouro, da paciência e da raiva.” O necessário e o contingente (1.1.5), o possível e o impossível, o duro e o macio (1.1.6), o real e o irreal (1.15.2) – todos eles crescem assim. Do ponto de vista de uma enteléquia, só existem interações mais fortes e mais fracas com as quais se faz um mundo.

2.4.8 Uma frase não se mantém porque é verdadeira, mas porque ela se mantém, dizemos que ela é “verdadeira”. No que ela se mantém? Em muitas coisas. Por quê? Porque ela amarrou seu destino a qualquer coisa mais sólida que si mesma que estivesse a mão. Como resultado, ninguém pode desacoplá-la sem desacoplar todo o resto.

  • Nada mais, senhores religiosos; nada menos, senhores relativistas.

2.5.1 Não é o suficiente ser o mais forte; eles também querem ser o melhor. Nunca é o suficiente vencer; eles também querem estar certos.

  • “A razão mais forte sempre se rende às razões do mais forte.” Esse é o suplemento de bondade que eu gostaria de retirar. A razão do mais forte é simplesmente a mais forte. “Esse mundo aqui embaixo” seria muito diferente se retirássemos esse suplemento, que não existe, se roubássemos dos vitoriosos essa pequena adição. Para começar, não seria mais um mundo basal.

2.5.2 O poder é a chama que nos leva a confundir uma força com seus aliados que a tornam forte (1.5.1). Se fossemos usar uma máscara de soldagem, poderíamos olhar para o ponto de fusão sem nos cegarmos.

  • Não quero mais confundir o reflexo de um escudo com o rosto de Atena dos olhos cinzentos, a não ser que eu queira.

2.5.3 É possível evitar que sejamos intimidados por aqueles que se apropriam de palavras e dizem estar “no poder”.

  • Na noite do Sabbath as bruxas voaram in potentia enquanto seus corpos dormiram na palha. Ninguém acredita nisso agora, mas a mágica continua, a mágica daqueles que acreditam que podem viajar além de seus corpos e além dos limites de sua força. O Sabbath negro dos magos da razão acontece todos os dias da semana, e essa mágica ainda não encontrou seus céticos (4.0.0).

2.5.4 Nós não pensamos nem raciocinamos. Na verdade, nós trabalhamos em materiais frágeis – textos, inscrições, traços ou pinturas – com outras pessoas. Esses materiais são associados ou dissociados por coragem e esforço; eles não têm sentido, valor ou coerência do lado de fora da rede estreita que os mantém juntos por algum tempo. Certamente podemos estender essa rede recrutando outros atores, e podemos também reforçá-la alistando materiais mais duráveis. Entretanto, não podemos abandoná-la nem mesmo quando dormimos.

  • O ofício do açougueiro se estende até onde vai a prática dos açougueiros, suas cabines, seus refrigeradores, seus pastos e seus abatedouros. Na porta ao lado do açougueiro – na mercearia, por exemplo – não há açougue. O mesmo vale para a psicanálise, a física teórica, a filosofia, a contabilidade, a seguridade social, em suma, todos os ofícios. Entretanto, certos ofícios dizem que são capazes de se estender potencialmente ou “em teoria” para além das redes dentro das quais praticam. O açougueiro nunca consideraria a ideia de reduzir física teórica à arte do açougue, mas o psicanalista afirma ser capaz de reduzir o açougue ao assassinato do pai, e epistemologistas falam alegremente dos “fundamentos da física”. Mesmo que todas as redes tenham o mesmo tamanho, a arrogância não está igualmente distribuída.

CONTINUA NA PARTE 4

Referências

LATOUR, Bruno. The pasteurization of France. Harvard University Press, 1993.

LATOUR, Bruno. Les microbes, guerre et paix: Irreductions. AM Métailié, 1984.

1 comentário em “Irreduções (Parte 3), por Bruno Latour

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