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“Fricção (atrito)”, por Anna Tsing

Da Série Verbetes

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Fonte: https://www.livescience.com/37161-what-is-friction.html

Traduzido por Letícia Cesarino

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A presente tradução do verbete sobre “Friction” publicado na The Wiley-Blackwell Encyclopedia of Globalization(2012) busca suprir uma lacuna de textos em português da antropóloga Anna Lowenhaupt Tsing (University of California, Santa Cruz e Aarhus Universitet, Dinamarca). Tsing adquiriu proeminência internacional dentro e fora da antropologia por sua participação original e reflexiva nos intensos debates sobre globalização que marcaram a academia e a esfera pública durante os anos noventa. Um artigo publicado na Cultural Anthropologyem 2000, “The Global Situation”, foi altamente influente no sentido de deslocar o trajeto da antropologia da globalização, que até então caminhava em larga medida no fluxo das demais ciências sociais em autores como Arjun Appadurai e Ulf Hannerz. Naquela ocasião, Tsing chamou atenção para o que hoje pode parecer óbvio: pressupostos analíticos e conceituais sobre a globalização como um processo homogêneo, orientado para o futuro, composto de fluxos, circulações e conexões crescentes eram parte do próprio idioma dos ideólogos (neoliberais) da globalização. No lugar da noção corrente de globalização, Tsing propôs falar de composições sempre contingentes e emergentes entre agendas e interesses heterogêneos, alguns dos quais logram universalizar, embora de modo sempre instável, seus “projetos de globalismo” particulares através do processo que ela viria a chamar de “fricção”.

Assim, a crítica reflexiva avançada em “The Global Situation” pavimentou o caminho para a publicação, quatro anos depois, de Friction: an Ethnography of Global Connection (2004).Foi com este livro que Tsing se destacou como referência central na antropologia sobre como não apenas pensar, mas principalmente executar, uma etnografia reflexiva sobre globalização baseada na inspiração gramsciana típica da época. Desde então, e com o acréscimo de referências a partir da antropologia pós-representacional de autoras como Marylin Strathern e Donna Haraway, a obra de Tsing tem se caracterizado por alta originalidade não apenas na análise mas na própria forma da escrita etnográfica. A julgar pela recepção de Frictione, mais recentemente, de The Mushroom at the End of the World(2017) – resultado etnográfico do seu projeto atual sobre relações multiespecíficas em paisagens perturbadas – seu experimentalismo etnográfico e criatividade e amplitude analíticas têm sido muito bem sucedidos, constituindo portanto uma inspiração para qualquer praticante do campo das ciências sociais.

Dado que, na obra de Tsing, conceitos e material empírico sempre andam juntos e são costurados de forma imanente no texto etnográfico, o verbete abaixo não poderia ser um substituto ao livro Friction. Mas é uma boa introdução à perspectiva baseada na fricção, bem como à marca distintiva da antropologia nos estudos da globalização.  

O termo fricção, ou atrito,[1]deriva de descrições do mundo físico, onde ele se refere à resistência ao movimento relativo entre corpos em contato. Considerações sobre fricção emergiram nos estudos sobre a globalização como um contraponto a estórias de fluxos globais “sem atrito” de bens, ideias, pessoas e dinheiro. Essas estórias foram populares nos anos noventa, entre acadêmicos e formadores de opinião arrebatados pelo entusiasmo em torno da globalização, que imaginaram então um novo mundo sem fronteiras. Por outro lado, as abordagens baseadas na fricção mostram como trajetórias globais emergem através de histórias específicas de engajamento e encontro. A fricção é o engajamento e o encontro através dos quais trajetórias globais tomam forma. Indo além de estereótipos do “global” como tudo aquilo que é novo, potente e moderno, a fricção chama nossa atenção para a heterogeneidade imprevisível de mundos emergentes.

As abordagens para a globalização baseadas na fricção não presumem que a diferença seja sempre uma fonte de conflito. Esse pressuposto se associa à perspectiva do “choque de civilizações”, uma escola de pensamento sobre interações globais associada ao nome de Samuel Huntington (1996). Nos estudos da globalização, o termo fricção não se refere exclusivamente a conflitos, mas inclui outros tipos de interações baseadas na diferença como alianças, empréstimos, fusões, traduções e acomodações. Essa abordagem também pode ser diferenciada das linhas mais ortodoxas do marxismo, por um lado, e do liberalismo, por outro. Nessas escolas, entende-se a história como uma difusão progressiva de universais, que vão sendo adotados à medida que formas arcaicas vão desaparecendo. Em contraste, notar a fricção é permitir que o irregular e o inesperado façam parte de nossas estórias de história global. Mesmo os universais mais potentes só se consolidam na medida em que se engajam em histórias particulares. Esse processo de engajamento é a fricção.

Anna Tsing introduziu o termo em Friction: An Ethnography of Global Connection(2004). O livro utiliza o conceito de fricção para explorar políticas ambientais dentro e além das florestas da Indonésia. Ele discute as indústrias de madeira e mineração, por exemplo, em relação à tração entre capital transnacional, políticas nacionais e processos regionais de formação de fronteira, que têm operado conjuntamente para tomar terra e recursos das comunidades indígenas. Tsing argumenta que o capitalismo global emerge a partir desses momentos de interconexão, e é por isso que visões etnográficas desafiam – e não apenas complementam – cenários globais (ver também Tsing 2009). Tsing também mostra como a fricção é chave para compreender o conhecimento cosmopolita, seja ele leigo ou científico, sobre a natureza. Os amantes da natureza indonésios se alimentam de legados que vão desde John Muir ao Malboro Man, mas os adaptam – através da fricção – a uma prática distintivamente nacional. De modo similar, questões de pesquisa científica emergem através da fricção entre histórias regionais e nacionais, mesmo onde os cientistas estão em constante comunicação internacional (ver também Tsing e Satsuka 2008). Movimentos sociais também podem ser compreendidos através da fricção, argumenta Tsing. Nos movimentos de proteção ambiental e justiça social que ela discute, “pacotes carismáticos” no formato de módulos viajam de um local a outro. A mobilização através desses pacotes produz causas comuns, concomitantemente à introdução – através de fricção – de novas genealogias à mistura.

O conceito de fricção se soma a um feixe de ferramentas que têm sido desenvolvidas para compreender o que Arjun Appadurai (1990) chamou de “disjunção e diferença na economia cultural global.” A fricção segue o legado de revitalização da noção de “articulação” de Antonio Gramsci, capitaneada por Stuart Hall (1996) e James Clifford (1997). Articulação explica a formação de novas identidades políticas baseadas em alianças entre grupos, e encontros entre ideias já existentes. Assim, Clifford (2001) mostra como identidades indígenas emergem no diálogo tanto com outros grupos indígenas, quanto com maiorias não-indígenas. A fricção se inspira na teoria da articulação para tecer um argumento sobre trajetórias globais construídas através de articulação. A fricção também se baseia em teorias feministas da “interseccionalidade” (Crenshaw 1991), nas quais interseções históricas produzem a especificidade de sistemas de desigualdade. Como na teoria feminista interseccional, nas abordagens baseadas na fricção diferença e diversidade não são necessariamente positivas; a diferença também pode ser um fundamento para a exploração e a opressão. Mas a “produção tangencial de globalidade” (Tadiar 2009) que emerge a partir de interseções históricas pode oferecer, ao mesmo tempo, uma base para a esperança.

Outras ferramentas relevantes para a tarefa de estudar a heterogeneidade na globalização incluem os conceitos de “tradução” introduzidos por um lado pela teoria pós-colonial (ex., Liu 1995) e, por outro, pelos estudos da ciência (ex., Callon 1986). A fricção toma dos estudos da ciência conceitos como “objeto de fronteira” (Star e Greisemer 1989) para ajudar a entender como comunidades diversas participam na ciência. Antropólogos ambientais como Adam Henne (2008) e Sandy Toussaint (2008) acham útil rastrear o que Henne chamou de “fricção científica ambiental”.

A fricção tem sido um conceito útil para considerar a emergência de movimentos políticos tanto globais quanto locais, assim como a relação entre os dois. Como movimentos sociais incorporam diferentes perspectivas (Besteman 2008)? Como alianças globais se formam, apesar das diferenças (Tsing 2008)? A fricção tem sido utilizada no campo da educação para mostrar o que acontece a práticas educacionais à medida que são refeitas em locais variados (Meinert 2008). Um grupo de acadêmicos de diferentes disciplinas experimentou uma abordagem baseada na fricção para estudar como mundos politicamente influentes viajam (Gluck e Tsing 2009). Palavras como “segurança” e “terrorismo” ajudaram a mudar o mundo e, não obstante, elas o fazem através da fricção com histórias regionais e nacionais.

O conceito de fricção nos lembra que encontros heterogêneos e desiguais podem levar a novos arranjos de cultura e poder. A fricção torna as conexões globais potentes e efetivas. A fricção mantém o poder global em movimento. Não obstante, a fricção refuta a mentira de que o poder global opera como uma máquina eficiente. A diferença pode perturbar, provocando pequenas falhas assim como catástrofes inesperadas. Às vezes, a diferença inspira insurreição. A fricção também pode ser a mosca no nariz do elefante.

Appadurai, A. (1990) Disjuncture and difference in the global cultural economy. Public Culture 2(2): 1–24.

Besteman, C. (2008) Transforming Cape Town. University of California Press, Berkeley.

Callon, M. (1986) Some elements of a sociology of translation: domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. In: Law, J. (ed.) Power, Action and Belief. Routledge & Kegan Paul, London.

Clifford, J. (1997) Routes: Travel and Translation in the Late Twentieth Century. Harvard University Press, Cambridge, MA.

Clifford, J. (2001) Indigenous articulations. The Contemporary Pacific 13(2), 468–490.

Crenshaw, K. (1991) Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review 43(6), 1241–1299.

Gluck, C. & Tsing, A. (2009) Words in Motion: Toward a Global Lexicon. Duke University Press, Durham, NC.

Hall, S. (1996) Race, articulation, and societies structured in dominance. In: Baker, H., Diawara, wbeog222.indd 2 1/29/2012 12:30:23 AM 3 M. & Lindeborg, R. (eds.) Black British Cultural Studies. University of Chicago Press, Chicago, pp. 16–60.

Henne, A. (2008) Making Good Wood: Technologies of Value and the Forest Stewardship Council in Chile. Ph.D. dissertation, University of Georgia.

Huntington, S. (1996) The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. Simon & Schuster, New York.

Liu, L. (1995) Translingual Practice: Literature, National Culture, and Translated Modernity  – China, 1900–1937. Stanford University Press, Palo Alto, CA.

Meinert, L. (2008) Hopes in Friction: Schooling, Health, and Everyday Life in Uganda. Information Age Publishing, Charlotte, NC.

Star, S. & Griesemer, J. (1989) Institutional ecology, ‘translations’ and boundary objects: amateurs and professionals in Berkeley’s Museum of Vertebrate Zoology, 1907–39. Social Studies of Science 19(4), 387–420.

Tadiar, N. (2009) Things Fall Away: Philippine Literatures, Historical Experience and Tangential Makings of Globality. Duke University Press, Durham, NC.

Toussaint, S. (2008) Kimberley friction: complex attachments to water-places in northern Australia. Oceania 78(1), 46–61.

Tsing, A. (2004) Friction: An Ethnography of Global Connection. Princeton University Press, Princeton, NJ.

Tsing, A. (2009) Supply chains and the human condition. Rethinking Marxism 21(2), 148–176.

 Tsing, A. & Satsuka, S. (2008) Diverging understandings of forest management in matsutake science. Economic Botany 62(3), 244–256.

[1]N. da T.: Concordo com a sugestão de Catarina Morawska Vianna de que “atrito” seria, tecnicamente falando, o melhor termo para traduzir a ideia original de Tsing, além de ter a vantagem de evitar confusões apressadas com a ideia clássica de “fricção interétnica” de Roberto Cardoso de Oliveira. Porém, neste caso, preferi preservar a poética do termo original (essencial em ideias como a de “fricção científica”) – que tem, afinal, um correspondente em português cujo significado não se afasta significativamente do seu correspondente em inglês.

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