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Sobre “estruturas de sentimentos” e contra-hegemonia em Raymond Williams, por Adelia Miglievich

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Cinco de Mayo, 1957, Belvedere Country Park – Los Angeles Public Library

Por Adelia Miglievich

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Raymond Williams (1921-1988), junto a Eric Hobsbawm, Perry Anderson, Edward Thompson, Richard Hoggart, dentre outros intelectuais independentes, fundam, em 1959, a New Left Review, na Grã-Bretanha. Herdeira da tradição marxista inglesa, iniciada em 1910 e reforçada em 1946 com o Communist party historians group, nascia da junção de duas outras revistas, passando a expressar o pensamento de uma “nova esquerda” que exibia a ruptura de uma parte da intelectualidade inglesa com a ortodoxia marxista.

Williams, “o melhor entre nós”, nas palavras de E. Thompson (CEVASCO, 2007), elaborou, nesse contexto, uma nova teoria da cultura a levar em conta a teoria da história de Marx, alterando, porém, o modelo de base e superestrutura que dava uma ilusão de autonomia aos campos da economia e da cultura tomados isoladamente, e que, a seu ver, minava a percepção da complexa totalidade social experimentada concretamente pelos sujeitos em articulação.

Absorvendo a produção da teoria cultural marxista, realizada na Europa continental sob a chancela de Lukács, Brecht, dos primeiros frankfurtianos, Sartre, Goldmann e Gramsci, o crítico galês fazia sua opção pelo conceito de hegemonia como processo e confrontava a noção de ideologia a vigorar no debate marxista, de cunho althusseriano. Reabilita, sem menosprezar a complexidade que isto envolve, a crítica cultural como recurso potente para a mudança: “intervenção produtiva” e “movimento de resistência”, uma vez que, embora extensiva, a hegemonia não é jamais absoluta.

[…] suas próprias estruturas internas são muito complexas e devem ser renovadas, recriadas e defendidas de forma contínua; pelo mesmo motivo podem ser constantemente desafiadas e, em certos aspectos, modificadas. (WILLIAMS, 2011, p. 52).

A hegemonia traduz um propósito político que, permeando instituições, relações e consciência, é menos, portanto, uma ação unilateral do dominador e mais a produção do senso comum, algo bastante geral, e a naturalização de práticas que parecem efetivamente tomar a totalidade do espaço existente. Aliás, a ideia de hegemonia como o resultado do processo de “saturação” da consciência subordinada em determinado momento (WILLIAMS, 1973) é, para Raymond Williams, a melhor aplicação da noção de totalidade tão proclamada pelo marxismo, que abandonaria, desse modo, o reino da abstração e se tornaria materializável:

[…] o que tenho em mente é o sistema central, efetivo e dominante de significados e valores que não são meramente abstratos, mas que são organizados e vividos. É por isso que a hegemonia não pode ser entendida no plano da mera opinião ou manipulação. Trata-se de todo um conjunto de práticas e expectativas; o investimento de nossas energias, a nossa compreensão corriqueira da natureza do homem e do seu mundo. Falo de um conjunto de significados e valores que, do modo como são experimentados enquanto práticas, aparecem confirmando-se mutuamente. A hegemonia constitui, então, um sentido de realidade para a maioria das pessoas em uma sociedade, um sentido absoluto por se tratar de uma realidade vivida além da qual se torna muito difícil para a maioria dos membros da sociedade mover-se, e que abrange muitas áreas de suas vidas (WILLIAMS, 2011, p. 53).

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20 Dec 1969, San Francisco, California, USA – A teacher leads his students with the black power salute and slogans at a Black Panther liberation school. Image by © Bettmann/CORBIS

Nota a astúcia na maneira como a hegemonia “incorpora” os valores culturais, significados e experiências que não fazem parte da cultura dominante, praticados e vividos como “cultura residual” de formações sociais antigas, passíveis de sobrevivência na cultura dominante se não a contradizem. Observa como, também, alerta às novidades, o processo de hegemonia realiza cooptações sutis à cultura dominante de culturas alternativas, tentando assimilar o mais rápido possível o que pode ser visto como emergente. É a hegemonia o “processo de seleção” mesmo pelo qual significados são incorporados e outros negligenciados e excluídos, dando vez a rearranjos e novas formas de dominação mais eficazes. Nesse sentido, as alternativas à cultura dominante podem ser toleradas e acomodadas desde que não ultrapassem a linha tênue entre o alternativo e o opositor:

Há uma distinção teórica simples entre o alternativo e o opositor, isto é, entre alguém que meramente encontra um jeito diferente de viver e quer ser deixado só e alguém que encontra uma maneira de viver e quer mudar a sociedade. Mas à medida que a área necessária de dominação efetiva se estende esse mesmo significado ou prática pode ser visto pela cultura dominante não apenas como desprezando-a ou desrespeitando-a, mas como um modo de contestá-la (WILLIAMS, 2011, p. 58).

De modo similar, as heranças do passado são trazidas para o interior da cultura dominante através do que Raymond Williams chama de “tradição seletiva” ou “passado significativo”, que se estendem até o presente já tendo sido “relidas” e modificadas com o fito de dar suporte ou, no mínimo, não contradizer o status quo. Converge assim com Benjamin, em sua atenção à extrema capacidade do pensamento hegemônico atrair para junto de si tradições julgadas passadistas. Como dizia o frankfurtiano, “nem os mortos estão a salvo enquanto o inimigo estiver vencendo, e ele não cessa de ser vitorioso”.

Há que se pensar, porém, que, embora seletiva, a tradição não é monolítica, mas contém várias formas de estruturar a experiência. Williams fala-nos de “consciência prática” como algo diferente da consciência oficial, momento em que explicita sua opção teórica pela ênfase nos “sentimentos” espraiados e rearticulados que se confundem com as experiências mesmas (o que nos permite refutar a acusação de que sua teoria haveria recaído nalgum idealismo). Aliás, R. Williams reconhece a experiência como “a melhor e a mais sábia palavra” (WILLIAMS, 1977, p.132), ainda que mantenha sua escolha por “sentimentos”, que tendem a ajudá-lo a não se perder, de um lado, do sentido processual da experiência (social), de outro, da consciência da prática em movimento.

Ao contrário das formações sociais já manifestas, dominantes ou residuais, as “estruturas de sentimento” são, sobretudo, formas emergentes, visíveis talvez como alterações da ordem ou mesmo “perturbações” (WILLIAMS, 1979). Além disso, como diz Soares, “a noção de estruturas de sentimento, como elaborada por Raymond Williams, é uma tentativa de apreender processos de emergência de experiências típicas que constituem um certo quadro geracional” (SOARES, 2011, p. 97). Assim, segundo Ridenti, “uma estrutura de sentimentos daria conta de significados e valores tais como são sentidos e vivido ativamente” (RIDENTI, 2006, p. 230).

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Edifício Copan. Foto: Marcelo Chechik

As “estruturas de sentimento” não têm que ter uma forma sócio-política explícita nem estão submetidas às redes burocráticas. São indefinidas e difusas, por isso mesmo, capazes de “driblar” a hegemonia. Se não suficientemente atentas às “estruturas de sentimentos”, as ciências sociais dificilmente chegariam a qualquer evidência de que as pessoas “desconfiam” da organização do mundo em que vivem. Williams está interessado nos tipos de mudanças incrementais que se reúnem em torno de uma ou mais gerações. Quer saber como podemos falar de “atmosfera de mudança” (ou de permanência) sem que pareçamos abdicar do mundo factual. Eis que sentimentos são reais. Talvez, os artistas, como “antenas” possam expressá-los melhor em suas obras, que não se descolam de suas trajetórias e das de seus grupos; mas há “artistas” em todos nós, há potência desestabilizadora e criativa, há capacidade de se impressionar, sentir, perceber, não como ato individual, mas como convivência. Williams compartilha conosco seus próprios sentimentos em relação a seu país e a sua cidade:

A cidade para Williams é cheia de sentimentos ambivalentes. Por um lado a cidade pode ser vista como uma obstáculo ao progresso: ele tem, escreve, ‘conhecido esse sentimento’ ao ‘olhar para grandes construções que são centros de poder’. Por outro lado, seu sentimento dominante em relação à cidade é um sentimento permanente de possibilidade, de encontro e de movimento. Um sentimento de possibilidade me parece um tipo muito diferente de sentimento a partir de um impulso ‘democrático’, ou um senso de auto-respeito. Sugere energia, um senso de ritmo, uma forma desconhecida de prática que poderia irromper a qualquer momento. Fica ao lado do emergente, ou do pré-emergente, enquanto o sentimento democrático que seu pai possuía ficava mais ao lado do residual, uma forma que estava sendo varrida para o esquecimento por formas burocráticas anônimas (HIGHMORE, 2016, p. 154-155, tradução do editor).[1]

Nosso autor estudou desde diários ao vestuário, os edifícios, como acima, e mesmo a religião. Sua atenção, porém, está nos detalhes das obras de arte – arte que é sentimento – e as relações reflexivas destas com os contextos socioculturais em que são produzidas. Tal como Highmore (2016, p. 145) sugere, as “estruturas de sentimentos” de Williams têm cores e cheiros, sabores particulares, podem ser tocadas, feitas de madeira ou de aço, de veludo, de parafina, querosene ou algodão. Exalam otimismo, melancolia, esperança, ansiedade, exuberância. Seu olhar especial para a arte, em que pese esta, em muito, responder a fim de legitimar as práticas hegemônicas, é sua percepção de que a mesma pode funcionar também como “perturbação”, anunciando algo como uma “consciência coletiva emergente” – termo tomado de empréstimo de Lucien Goldmann – isto é, a consciência empírica de um grupo social em uma situação histórica particular.

A cara noção de “estruturas de sentimentos” possibilita ao teórico alcançar, como insisto em dizer, as manifestações emergentes, até mesmo pré-emergentes, de resistência e oposição às práticas e às ideologias hegemônicas na ordem social existente, que não existem somente como fluxos, ainda que germinais. Williams define-as como uma “formação estruturada” que, mais tarde, tenderá a ser identificada, por exemplo, com uma certa geração e se poderá buscar até seus antecedentes. A “estrutura de sentimentos” é um tipo de articulação que expressa uma fase incipiente de mudanças na organização social. Sua existência é social, material e histórica:

[a estrutura de sentimento] é a articulação do emergente, do que se escapa à força acachapante da hegemonia que certamente trabalha sobre o emergente nos processos de incorporação, através dos quais transforma muitas de suas articulações para manter a centralidade de sua dominação (CEVASCO, 2001, p. 158. Os colchetes são meus).

Raymond Williams defende a noção de “especificidade empírica histórica”, sabendo que a estrutura é sempre a do sentimento real ligado à especificidade da experiência coletiva histórica e de seus efeitos reais nas pessoas e nos grupos. Tal qualidade empírica relaciona-se à fenomenologia de Schutz (1962), isto é, à consciência intersubjetiva e aos processos interativos estruturais por meio dos quais se formam (e se transformam) as estruturas sociais e culturais nascentes.

[…] analisar a homologia estrutural entre expressões diferentes de uma consciência coletiva emergente. Como consciência empírica em potencial, estas expressões eram ideologias nascentes; e como o mundo imaginativo dos escritores e pensadores, elas eram visões de mundo. Esta homologia estrutural entre a contínua experiência reflexiva da vida social e suas formulações literárias reflexivas era, para Williams […] o fato social significante. (FILMER, 2009, p. 376. Os colchetes são meus).

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Foto: Maria Buzanovsky

A relação de conteúdo pode ser meramente reflexiva, mas a relação de estrutura, muitas vezes ocorrendo onde não há uma aparente relação de conteúdo, mostra, para Williams, o principio organizador pelo qual uma visão particular de mundo dá coerência ao grupo social e o mantém, operando realmente na consciência. Os processos da experiência coletiva nascente e suas estruturas ordenadoras emergentes são ordens bem diferentes de fenômenos, de modo que o que serão, mais tarde, compreendidos como a sequência causal e a prioridade dos elementos constitutivos na sua eventual transformação histórica como totalidades dependerão do processo de atuação humana. No caso específico das totalidades nascentes, este processo sequer tinha começado conscientemente como prática e ainda se articulava através do simbolismo, evasivo ao senso comum e ao discurso normativo (FILMER, 2009, p.373).

Para Williams, o sentimento democrático é um aspecto crucial de uma cultura política progressista. Por sinal, o impulso democrático é mais eficaz como sentimento do que como pensamento, isto é, precisa ser vivido, experimentado, produzir gestos e atos. Não que Raymond Williams pretendesse anatgonizar, desde sempre, pensamento e sentimento, mas, para ele, o pensamento há de ser também sensação e sensibilidade, consciência prática, relacionamento vivo e contínuo.

Williams obteve por meio de sua nova teoria da cultura – o materialismo cultural – a chance de evidenciar em sua época um sentimento permanente de “possibilidade”, de congraçamento e de movimento, o tal “impulso democrático” a envolver um senso de auto-respeito. O estudioso vislumbra, assim, uma energia, uma sensação de um ritmo, uma forma desconhecida de prática que irromperia a qualquer momento, como efetivamente aconteceu. O sentimento democrático que seu país experimentava, embora obscurecido por forças burocráticas anônimas, não era um idílio, mas uma densa rede de gatilhos de sensações e sentimentos conflitantes e poderosos.

Tal é o lugar de sua tese no cômputo das teorias contemporâneas, talvez, a merecer ser revisitada posto que, como disse Highmore (2016), o trabalho em torno do conceito de “estruturas de sentimentos” nunca foi simplesmente o de aprimorar a história cultural (ou a teoria social). Tratava-se de “[…] enteder como a mudança acontece, como formas culturais e sociais são mantidas, e, talvez o mais importante de tudo, de localizar o que Williams se referiu como ‘recursos de esperança’” (HIGHMORE, 2016, p.160)[2]. Algo que se parece com a perseguição dos “nichos de oxigenação” e do lócus da crítica imanente em nosso mundo. Um projeto que, talvez, os desapontamentos no tempo levaram a sociologia a abandonar – o que não significa que todos os sociólogos o fizeram.

Notas:

[1] The city for Williams is full of ambivalent feelings. On the one hand the city can be seen as an obstacle to progress: he has, he writes, ‘known this feeling’ when ‘looking up at great buildings that are the centres of power’. On the other hand his overarching feeling towards the city is a permanent feeling of possibility, of meeting and of movement. A feeling of possibility strikes me as a very different kind of feeling from a ‘democratic’ impulse, or a sense of self-respect. It suggests energy, a sense of a rhythm, an unknown form of practice that could erupt at any time. It sits on the side of the emergent, or the pre-emergent, whereas the democratic feeling that his father had sat more precisely on the side of the residual, a form that was being steamrolled into oblivion by anonymous bureaucratic forms.

[2] understanding how change occurs, how social and cultural forms are maintained, and, perhaps most importantly of all, of locating what Williams referred to as ‘resources of hope.

Referências:

CEVASCO, Maria Elisa. Apresentação. In: WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave. Um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

______. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

FILMER, Paul. A estrutura do sentimento e das formações sócio-culturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 14, n. 27, 2009, p. p. 371-396 (file:///C:/Users/Administrador/Downloads/1944-4558-1-PB.pdf). Acesso em 10 de maio de 2016.

HIGHMORE, Ben. Formations of Feelings, Constellations of Things. Cultural Studies Review (CSR) 2016, 22, 1, September 2016, p. 144-167 (http://epress.lib.uts.edu.au/journals/index.php/csrj/index). Acesso em 01 de junho de 2016.

RIDENTI, Marcelo. Artistas e política no Brasil pós-1960: itinerários da brasilidade. In: RIDENTI, Marcelo; BASTOS, Elide Rugai; ROLLAND, Denis (Org.). Intelectuais e Estado. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p. 229-261.

SOARES, Eliane Veras. Literatura e estruturas de sentimento: fluxos entre Brasil e África. Sociedade e Estado (UnB), vol. 26, n. 2, maio/ago, 2011, p. 95-112.

SCHUTZ, A. Collected Papers. The Hague: Nijhoff, 1962.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.

______. The Country and the City. London: Chatto & Windus, 1973

______. Politics and Letters: Intervieivs with New Left Review. London: NLB, 1979.

 

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