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“Teoria Sociológica Contemporânea”, por Carlos Eduardo Sell e Carlos Benedito Martins (Annablume, 2017)

teoria sociologia contemporânea

Carlos Eduardo Sell (UFSC)

Carlos Benedito Martins (UNB)

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Introdução

O Que é Teoria Sociológica Contemporânea?

De volta aos manuais[1]! Consciente de seu valor e tendo em vista a lacuna de materiais produzidos no Brasil[2], a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) patrocina a elaboração do livro Teoria sociológica contemporânea: autores e perspectivas. O livro reúne textos inéditos de pesquisadores de diferentes gerações que têm se consagrado de forma especializada ao aprofundamento e estudos de autores e correntes do pensamento sociológico. Tal empreendimento revela o quanto a pesquisa sobre a teoria sociológica per se constitui atualmente uma sólida área de investigação da sociologia brasileira; como mostra, por sinal, o longo histórico dos Grupos de Trabalho de Teoria Sociológica da SBS e de Teoria Social da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais). É importante ressaltar esta novidade: trata-se da primeira publicação brasileira que, de forma coletiva, visa apresentar, de modo amplo e sistemático, o conjunto das teorias sociológicas atuais, fornecendo a estudantes de graduação e pós-graduação de ciências humanas, e ao público em geral, uma visão atualizada, crítica e abrangente das discussões sobre a natureza da ciência sociológica e de suas principais perspectivas e abordagens teóricas contemporâneas[3].

Em função deste objetivo, levanta-se logo o problema de determinar o que devemos entender (para os fins desta coletânea) pelo objeto em questão: afinal, do que trata a teoria sociológica contemporânea? Desdobrando os termos e levando em consideração o caráter multiparadigmático da sociologia, vale perguntar: 1) o que significa “teoria”, 2) o que entendemos pelo adjetivo “sociológica” e, por fim, 3) como determinar o que é “contemporâneo”?

O lugar da teoria na atividade sociológica, como em qualquer ciência, é objeto de inúmeros debates no campo da epistemologia. Mas, independente da concepção professada, está correto Jeffrey Alexander (1987) quando chama a atenção para o fato de que entre a “teoria” de um lado e a “empiria” de outro temos diferentes níveis de abstração que começam no terreno das observações  factuais até chegar ao plano mais vasto das pressuposições gerais, onde ele localiza, de fato, a chamada “teoria sociológica” (em sentido estrito)[4]:

esquema do livro de Sell       

Consequentemente, que a teoria (em seus diferentes modelos, graus de abrangência e complexidade) é um elemento intrínseco da atividade sociológica e, nesta medida, concerne a qualquer profissional desta ciência (mesmo aquele que não é especialista na teoria em si mesma e tem vocação eminentemente empírica), não é o que está em questão aqui (SWEDBERG, 2014a; 2014b). É claro que toda investigação sociológica é, a seu modo, além de empírica, intrinsecamente teórica. Portanto, não é neste sentido que utilizamos aqui a expressão teoria sociológica, mas no sentido dado a ela por Alexander, quer dizer, enquanto conjunto de pressupostos gerais sobre a vida social e sobre a sociedade que não são resultado direto ou necessário da indução a partir do empírico (generalização).

Tendo respondido – em linhas gerais – o que entendemos por “teoria”, vejamos o que significa o segundo termo da questão, ou seja, o que é uma teoria sociológica. Embora, neste aspecto, a influente proposta de Giddens (2003: XVII) tenha deitado profundas raízes no léxico contemporâneo, não seguimos aqui a distinção que ele propõe entre “teoria social” e “teoria da modernidade”. Nos termos do autor, a teoria social seria uma atividade interdisciplinar que trata primordialmente das relações entre agência e estrutura, definindo-se a sociologia a partir do tema mais específico da modernidade. Ou, para dizê-lo em termos simples e diretos: para Giddens, teoria sociológica = teoria da modernidade. Nossa definição engloba as duas dimensões, portanto, ao nos referirmos à teoria sociológica apontamos para aquelas concepções gerais (produzidas no interior ou incorporadas à disciplina de sociologia) que dizem respeito a natureza das ações, relações, processos e estruturas sociais em sentido amplo e da sociedade moderna em particular. Na acepção aqui adotada a teoria é um âmbito próprio da sociologia que se ocupa tanto do social (em sentido abstrato ou amplo) quanto da sociedade moderna (em sentido concreto ou restrito) e nessa medida ela compreende tanto a “teoria do social” [Sozialtheorie] quanto a “teoria da sociedade” [Gesellschaftstheorie]. A teoria da sociedade moderna, por sua vez, distingue-se da diagnose social ou dos “diagnósticos de época” [Sozialdiagnose] que possuem um acento primordialmente crítico ou normativo. Neste caso podemos falar também da “crítica da sociedade” [Gesellschaftskritik].

É a partir desta concepção que as correntes e autores apresentados neste livro foram selecionados, pois trata-se de nos remetermos àquelas:

(1) teorizações abrangentes que nos fornecem um retrato das propriedades gerais da atividade humano-social e;

(2) uma definição ou diagnose crítica da vida social em suas condições atuais.

Para dizê-lo novamente: a teoria sociológica é o ramo da sociologia que se ocupa tanto da teoria do social (em nível abstrato) quanto da teoria da sociedade moderna (em sentido concreto). Em função desse entendimento ficaram de fora problemáticas particulares e determinadas da sociologia (como classe social, gênero, poder, arte, direito, raça, Estado, ciência, etc.) que, se não deixam de ser fundamentais em si mesmas, e mesmo que intimamente relacionadas com o eixo de muitas das teorias sociológicas atuais, quando tomadas isoladamente nos arrastariam para um sem número de campos aplicados ou específicos da investigação sociológica, como a sociologia política, a sociologia da religião, a sociologia do direito, a sociologia da ciência, a estratificação social, gênero, etc.

Quanto ao período contemporâneo que, diferente do “clássico”, não se organiza em torno de um cânon de autores consensualmente estabelecido (Marx, Durkheim, Simmel, Weber), adotamos como critério geral (ainda que não de forma rígida) um corte temporal que contemplas às grandes teorias [grand theories] que marcaram o discurso sociológico especialmente no contexto do Pós-Segunda Guerra Mundial até a atualidade. Embora não tenhamos a pretensão da exaustividade, procuramos oferecer um panorama tão amplo e plural quanto possível (e também levando em consideração as dificuldades operacionais que tal empreitada comporta em termos de expertise), incluindo na discussão aquelas que nos pareceram as correntes mais influentes e ainda atuais das últimas décadas. Isso não significa que todas as linhas de pensamento estejam presentes (se é que isso é possível).

O leitor poderá sentir falta, por exemplo, do funcionalismo (na versão de Robert Merton) ou mesmo  de certas correntes do marxismo (ainda que a Escola de Frankfurt e as novas teorias críticas estejam bem representadas), mas nosso entendimento foi que estes já são temas bem trabalhados (pelos menos em seus pressupostos básicos) nos textos de teoria social clássica. Há ainda quem possa lamentar a ausência da sociobiologia, da sociologia histórica, da sociologia estrutural (Peter Blau), dos estudos culturais (Raymond Williams, Stuart Hall), do behaviorismo social (de George Homans), da teoria das redes (Harrison White), da sociologia cultural (Alexander), do estruturalismo (Lévi-Strauss), da teoria da complexidade (Edgar Morin), do neo-institucionalismo e de tantas outras vertentes ou autores do pensamento social contemporâneo. Sem deixar de reconhecer a inevitável seletividade de um empreendimento complexo como este, buscamos, de todo modo, fugir tanto da tendência documental quanto vanguardista. Evita-se tanto o mero registro histórico-descritivo, por um lado, quanto a fixação em modismos que proclamando solenemente suas viradas (turns) parecem esquecer as correntes de longe alcance que informam a discussão teórica em sociologia, por outro.

O estudo da teoria sociológica comporta diferentes estratégias analíticas que podemos classificar, grosso modo, da seguinte maneira[5]:

  • A primeira estratégia, mais complexa, é de cunho histórico-sociológico e busca reconstruir as condições intelectuais e sociais que presidem à elaboração das teorias sociológicas[6].

Parte-se do pressuposto de que os discursos teóricos produzidos pelos sociólogos são, também eles, produtos sociais e o que se faz, neste caso, é uma sociologia da sociologia ou uma sociologia dos sociólogos (PIRIOU, 1999)[7].

  • A segunda, de tipo sistemático, intenta, em direção diferente, elaborar um corpo cumulativo e integrado de temas, problemas ou questões, que são constitutivos da matéria ou conteúdo da teoria sociológica (ou da sociologia geral, para retomar uma terminologia mais antiga[8]).

O que se pratica, neste segundo caso, é a chamada meta-teoria (a reflexão teórica sobre a teoria (RITZER, 1991)). Por este ângulo são critérios analíticos estruturados a priori que informam a análise. Nesta segunda estratégia os caminhos novamente se bifurcam, pois a elaboração de uma teoria sistemática também pode seguir a via histórica (organizando tais temas a partir da sequência cronológica de autores, correntes ou escolas que estabelecem certas tradições de pensamento em cujo núcleo reside um conjunto de problemas inter-relacionados) ou a via sistemática (lógico-conceitual), neste caso privilegiando questões e problemas estruturantes e fundamentais do discurso sociológico[9].

Como esta coletânea não se pretende um estudo crítico que visa discutir, no âmbito da pesquisa avançada, issues da teoria sociológica[10], mas também não uma mera descrição ou elenco histórico-descritivo, optamos pela segunda estratégia, o que nos levou a organizar os capítulos em torno de quatro problemáticas chaves do âmbito teórico em sociologia. Elas podem ser sintetizadas nos seguintes termos:

  • epistemologia (que contempla o debate entre realismo x anti-realismo)[11];
  • metodologia (que contempla o debate micro x macro)[12];
  • modernidade (que diz respeito as características da sociedade moderna);
  • normatividade (que se situa no nível do dever-ser)[13].

Os primeiros dois tópicos dizem respeito a chamada “teoria do social” [Sozialtheorie], o terceiro nos remete à “teoria da sociedade” [Gesellschaftstheorie] e a quarta problemática aos “diagnóstico críticos sobre nossa época” [Sozialdiagnose]. Estes quatro eixos organizam a coletânea, ainda que, por razões didáticas, o tópico da metodologia, dedicado a apresentação das abordagens holistas (macro), individualistas (micro) e sintéticas (macro e micro), e dada a sua centralidade na teoria sociológica, tenha sido desdobrado em três partes. Isto não implica, contudo, que cada uma destas problemáticas não volte a ser eventualmente discutida no interior das outras seções e capítulos do livro, a depender do pensador, teoria ou assunto em pauta. A organização na forma de partes não deve induzir a uma leitura estanque do livro, menosprezando-se a imbricação destas quatro questões nos diferentes capítulos que compõe a coletânea. Nas linhas seguintes vamos detalhar melhor cada uma destas problemáticas.

Para acessar o sumário, clique aqui.

Notas

[1] Um levantamento abrangente está fora do escopo desta introdução, mas alguns exemplos merecem ser destacados. No caso da literatura em inglês, por exemplo, Jonathan Turner (2010; 2013 e 2014) e Jeffrey Alexander (1982a; 1982b; 1983a e 1983b) são autores bastante prolíficos. Charles Lemert (1993), Charles Lemert e Anthony Elliott (2014), Craig Calhoun et al. (2008), George Ritter (2008) e John Scott (1995) também oferecem um panorama bastante elucidativo. No cenário francês temos livros bem elaborados como os de Berthelot (2000), Béraud e Coulmont (2008), Jacquemain e Frére (2008) e Bronner e Keucheyan (2012). Em língua alemã foram publicados recentemente, entre outros, o Handbuch soziologische Theorien [Manual de teorias sociológicas) de Kneer e Schroer (2009), a trilogia (por autores) organizada por Dirk Käsler (2005) e o estudo sistemático de Wolfgang Schluchter (2015).

[2]Dentre as exceções, destaca-se o escrito de Domingues (2003). Os demais e poucos materiais existente são, em geral, traduções, tais como em Lallement (2008), Corcouff (2001), Giddens  e Turner (1999) e Kumar (1997). 

[3] Um interessante precursor deste modelo é a coleção Grandes Cientistas Sociais (coordenada por Florestan Fernandes) que em seus 60 volumes apresentou uma antologia de alguns dos principais pensadores do conjunto das ciências humanas (incluindo clássicos e contemporâneos) com excelente introduções explicativas.

[4] Mouzelis (1995: 01), de forma mais simples, adota a distinção entre teoria como recurso (meio) ou como fim, ou nas suas próprias palavras: “(i)teoria como um conjunto de enunciados substantivos interrelacionados que tenta nos dizer algo novo, algo que não conhecemos sobre o mundo social, quais enunciados podem ser condicionalmente provados ou refutados através da investigação empírica; e (ii) teoria como um conjunto de ferramentas que simplesmente facilitam, ou preparam o terreno, para a construção de teoria substantivas”.

[5] Seguindo-se a célebre distinção proposta por Robert Merton (1970) entre história e sistemática.

[6] O influente estudo de Fritz Ringer (2000) sobre os “mandarins alemães” e de Wolf Lepenies (As três culturas de 1996), ambos tratando da sociologia clássica, são modelares neste sentido.

[7] Peter (2015) distingue entre três modalidades de análise da teoria sociológica: a “cognitiva” (que pode ser histórica ou paradigmática), a “discursiva” (que analisa as propriedades do discurso e seus efeitos) e a social que, por sua vez, pode estar centrada nos atores sociais ou nas instituições sociais.

[8] O termo “sociologia sistemática” era de uso bastante generalizado no pós-guerra, mas veio ser tornar pouco usual. Dentre alguns exemplos podemos lembrar de Georg Simmel (2006) que já diferenciava entre sociologia geral (histórica), sociologia formal (ou pura) e sociologia filosófica. Karl Mannheim (1971: 38) propõe a distinção entre sociologia geral e sistemática, de um lado e a sociologia histórica, de outro (esta última dividida entre sociologia histórica e sociologia comparada). Por fim, Florestan Fernandes (1970: 57-73) diferencia entre a sociologia sistemática (ou formal), a sociologia descritiva, a sociologia histórica e a sociologia comparada.

[9] A perspectiva era bastante comum nos primórdios da sociologia acadêmica no Brasil (vide-se FERNANDES (1970) ou mesmo MANNHEIM, 1971). No campo internacional não custa lembrar dos célebres textos de Pitirim Sorokin (1969) e de Talcott Parsons (1969).

[10] Um balanço crítico da produção brasileira em teoria sociológica é realizado por Costa (2010).

[11] O que não dizer, é claro, que a chamada “filosofia das ciências sociais” (ou mesmo a filosofia da sociologia) restringe-se a este ponto. Para uma panorama global veja-se Rosenberg (1995).

[12] Nos termos de Joas e Knöbl (2004), além do tema da “ação” (micro) e da “ordem” (macro), não podemos esquecer ainda do tema da “mudança”. Para um retrato desse último tema veja-se Jäger (2003).

[13] Uma explicitação mais ampla do âmbito e natureza desses problemas pode ser encontrada em Vandenbergue (2009) e em Knöbl e Joas (2004). A posição realista encontra-se representada em Searle (1997) e o construtivismo em Iacking (2001). O estado da arte do debate micro-macro (ou holismo versus individualismo) está bem retratado em Zahle e Collin (2014). Um acervo dos diferentes diagnósticos do tempo presente pode ser encontrado em Kron (2010) e Dimbath (2016). Para o tema da normatividade em teoria social, o que inclui a chamada “filosofia social”, confira-se Jaeggi (2009).

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