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O sofrimento em presença: antropologia e ação humanitária, por Jean-François Véran

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Por Jean-François Véran (IFCS-UFRJ)

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Propor uma reflexão sobre ação humanitária de emergência e Antropologia imediatamente sugere polaridades múltiplas, a saber, a questão da temporalidade que coloca de um lado, a emergência humanitária, na qual horas se contam em vidas, e do outro, o tempo estendido e reflexivo do trabalho antropológico. Em segundo lugar, existe a questão da finalidade, que se divide entre o que seria um hiper-pragmatismo operacional e um pensamento acadêmico sem outro propósito que ele mesmo. Enfim, a questão do objeto e do sujeito se desdobra num “ser humano” tido como irredutível a princípio e solidamente amarrado ao dogma humanitarista, e num antropos, difratado pelo prisma de suas acepções nativas e construções antropológicas.

Mas não é esta leitura contrastiva que este trabalho intenta fazer. Trata-se, ao contrário, de pensar algum tipo de centralidade. O que fica do pensamento antropológico quando precipitado perante a evidência da morte dos outros? Confrontado com os cacos e fragmentos desses outros deslocados, o que sobra do edifício teórico da alteridade? Como pensar nos tempos da cólera no Haiti pós-terremoto? A partir da experiência do autor em ação humanitária como voluntário da organização “Médicos Sem Fronteiras”, este trabalho pretende contemplar essas perguntas a partir de uma reflexão sobre a situação de frente a frente emergencial. A hipótese elaborada aqui é que a ação prática humanitária somente é possível mediante a suspensão temporária de um conjunto de representações e significados, que permite a irrupção de um denominador comum imediatamente operacional. A questão, portanto será como qualificar este denominador a partir de uma antropologia da moral.

Grupos étnicos sem suas fronteiras

Tal objeto surgiu da interface de dois campos de questionamentos. O primeiro diz respeito às condições de possibilidade de se fazer – ainda – uma antropologia do humano. O segundo procede da tentativa de pensar uma antropologia do sofrimento em presença.

A reflexão parte de um questionamento próprio ao momento epistemológico da Antropologia como disciplina. A ideia é que desde os tempos coloniais, como “filha do colonialismo”, a Antropologia contribuiu muito para a invenção, produção e solidificação de fronteiras reais, supostas ou imaginárias. Hoje, em tempos de “multiculturalismo” globalizado, essas fronteiras reorganizam espaços políticos inteiros, democráticos ou não. Ora, ao sintetizar as lições críticas de seu passado acrítico, estima-se que cabe hoje à Antropologia refletir sobre os sentidos da palavra “Cultura” embutidos no termo de “multiculturalismo”.

Em artigo recente, defendi a tese de que a disseminação política do conceito de Cultura remete muito mais às acepções da Antropologia substancialista do século passado do que às visões construtivistas e interpretativistas dentro das quais o pós-modernismo ressemantizou o conceito (Véran, 2012). Como explicação, o artigo apontou ainda que atributos e substâncias culturais permitem muito mais eficientemente a mobilização política do que conceitos situacionais e fluídos. Consequentemente, e seguindo um princípio de vigilância e responsabilidade em contexto “identitário” generalizado, cabe à Antropologia disseminar melhor os resultados do vasto movimento de “desinvenção” de seus conceitos ontológicos, tais como “Cultura”, “Fronteira” e “Identidade” que a disciplina vem cumprindo há mais de 50 anos. Uma maneira de fazer isso seria resgatar a possibilidade de uma Antropologia além das fronteiras, e que, de maneira pluralista e difratada, ainda se articularia para pensar o antropos. Não se trata, porém, de resgatar os fragmentos de um humanismo filosófico da essência ou da ontologia. Tão pouco se faz questão de convocar qualquer invariante estrutural que viria atestar uma universalidade da psique humana. O propósito aqui é mais modesto: objetivar que “humano” é um conceito efetivamente construído, mobilizado e operacionalizado em determinadas situações – inclusive na relação de campo em ciências sociais – e que é cabível e oportuno fazer uma antropologia dessas situações.

  • neste contexto que trabalhar com “Médicos Sem fronteiras” fez bastante sentido: Como uma organização embasada em uma concepção tão universalista do sofrimento humano funciona em terras de emergência que apresentam frequentemente uma alteridade radical, inclusive na própria conceituação – ou não conceituação – do humano?

Sofrimento em presença e interpelação ética.

Para construir esta reflexão o intuito é pensar a ação humanitária como situação de “co-presença” efetiva, ou seja, para além das análises sobre as fundamentações ideológicas e morais das quais o “humanitarismo” procede. Fassin (2010) ou Boltanski (2007) já mostraram como o sofrimento a distância e a compaixão funcionam como operadores políticos. Não se trata aqui de questionar essas análises, mas de deslocá-las por um jogo de escala até o exato momento em que voluntários da “ajuda humanitária” e populações em situação emergencial de risco de vida encontram-se efetivamente. O que é antropologicamente acionado na co-presença de alguém que está morrendo ou em risco de vida?

Uma primeira hipótese pode ser construída a partir de uma reformulação do argumento de Boltanski acerca do “sofrimento à distância”. O autor estuda a configuração de uma “política da piedade” na qual da contemplação do sofrimento a distância, surge uma palavra de emoção que se torna atuante. De fato, Boltanski mostra que o engajamento no espaço público se faz pela irrupção de “comunidades de emoção” (a formula é de Rosanvallon) acerca de causas repentinas que surgem, não da deliberação no registro de justiça, mas da emoção e da simpatia no registro da piedade, no qual os indivíduos são apenas reconhecidos a partir das dimensões da felicidade e da infelicidade. Três “tópicos” são mobilizados, através dos quais a palavra do espectador se torna “atuante”: a indignação (processo do perseguidor), o sentimento (simpatia com o benfeitor), o sublime (quando os sentimentos se exprimem sobre o próprio espetáculo do horror vivido pelo infeliz). Esse quadro analítico define o que Boltanski chama de “pragmática do espectador”.

Coloca-se então a questão da sua transferência em situações nas quais o agente humanitário a partir do seu engajamento – geralmente iniciado como espectador – elimina a distância física através da ida ao campo e deixa de ser espectador. Não se trata de dizer aqui que a situação humanitária in situ deixa de se enquadrar analiticamente (a distância crítica) nos registros da politica da piedade e de ser eventualmente atravessada pelos tópicos da indignação, do sentimento e do sublime. Porém, enquanto à distância tais tópicos são justamente os operadores pelos quais a palavra se torna atuante, os mesmos operam para o agente humanitário como bloqueadores da ação humanitária imediata e por isso, são eles que devem ser mantidos a distância. Um agente que não consegue se desprender da posição de espectador e que desta forma continua no registro da emoção entra rapidamente em colapso emocional e é enviado de volta a distância. Foi o que pude testemunhar com Karina, uma enfermeira que trabalhava para a organização MSF no Haiti, no contexto de surto de cólera. Ela compensava a revolta emocional provocada pelo confronto com as mortes cotidianas com uma hiperatividade frenética, que os avisos repetidos da coordenadora de terreno não tinham conseguido frear. Um dia, eu a vi chorando em soluços sentada em frente a sua barraca. Ela sofria da chamada síndrome de burnout, um esgotamento dos recursos físicos e mentais, e por isso foi mandada no mesmo dia de volta para Genebra. A hipótese que se deduz é que por mais que a política da piedade seja um operador atuante para lidar com o sofrimento de outrem a distância, esta por sua vez, torna absolutamente impossível à ação humanitária em presença deste outrem. Outros registros estão acionados, configurando outra pragmática.

Justamente, baseando-se na sociologia dos regimes de ação de Boltanski, Philippe Corcuff construiu um regime dito de “interpelação ética” (ou de “compaixão”) para dar conta das situações de frente a frente em contexto hospitalar (Corcuff, 1998). A modelização é feita a partir da fenomenologia do Visage (rosto) e da “responsabilidade para outrem” de Emmanuel Levinas. Levinas descreve como um modo ordinário da ação “o fato de ser ‘prendido’, em prática e de forma não necessariamente refletida, por um sentimento de responsabilidade vis-à-vis da aflição de outrem, no frente a frente e na proximidade dos corpos” (Levinas, 1961). O regime de “interpelação ética” que Corcuff evidencia funciona na interface entre o reconhecimento do sofrimento de outrem como operador deste sentimento de responsabilidade e de entrega total, e a violência que suscita ao mesmo tempo a presença deste outrem sobre a tranquilidade pessoal e o próprio sentido de justiça (porque este em detrimento de todos os outros?).

Foi justamente esta a tensão vivenciada no cotidiano durante a operação de emergência de MSF em resposta ao surto de cólera no Haiti. Vale aqui lembrar que em 2010 a doença era bastante inédita na ilha. Surgida no contexto pós-terremoto, atingiu uma população com muito escasso acesso à saúde. Ora, a cólera tem cura fácil, mas sem soro de reidratação, pode matar em até três horas. Na região de Léogane, onde o único hospital havia sido destruído, toda a questão era então responder constantemente a uma injunção paradoxal. De um lado, dedicar-se sem limite ao caso particular de tal pessoa contaminada, do simples fato –irrecusável- que ela estava em situação de frente-a-frente e em risco de vida. Do outro, correr contra o relógio para implementar uma solução de acesso ao soro de reidratação para populações isoladas nas montanhas. Corcuff mostra como o regime de “interpelação ética” não é compaixão stricto sensu, mas também “blindagens”, “distâncias”, “bloqueios” contra a compaixão para resolver esta tensão entre a “atenção exclusiva à singularidade e as exigências comuns de justiça”, e para proteger a integridade pessoal contra os riscos de desagregação. Justamente o que não ocorreu com a enfermeira Karina.

Enfim, dentro do cotidiano da equipe MSF não havia nenhum debate normativo ou de princípio, nenhuma consideração ou transbordo humanista, nenhum “bom” sentimento. Podia-se trabalhar três meses ao lado de um parceiro sem sequer uma vez abordar a questão do sentido (da experiência ali vivida). Se na distância, o discurso é a modalidade atuante, ele desaparece na presença. A interpelação ética é muda (lindo). Como conclui Corcuff, ela é uma “ética prática”, corporificada, pouco reflexiva. Seu operador principal é o visage segundo Levinas, na presença da qual a questão da comum humanidade é como suspensa pela evidência temporária de sua resposta fenomenológica.

Em resumo, o que uma antropologia desta “ética prática” permite estabelecer é que a situação de sofrimento em presença (sugiro um grifo), não se reduz analiticamente a uma arqueologia de conceitos tais como “humanismo” ou “humanitarismo” que importaria em seguida “desconstruir” em uma exegese das representações e topografia das perspectivas. Aliás, talvez este seja o tipo de situação na qual mais se deva levar a sério o predicado de Pierre Bourdieu (1980), que não se pode confundir a razão teórica com o senso prático. Não é a moral humanitária que guia a dita “ação humanitária” quando apreendida em nível do frente a frente emergencial.

Uma economia do conhecimento em contexto de emergência

Se o sofrimento em presença não é redutível nem a uma antropologia das emoções, nem a uma política da piedade, e nem a uma sociologia da moral como orientação subjetiva da ação, como, então qualificar tal situação?

É preciso num primeiro passo voltar para a dimensão fenomenológica de Levinas, isso porque, como já foi posto, a “interpelação ética” de frente a frente opera por suspensão da reflexividade em favor de outros registros de acesso ao real como a experiência da humanidade do “rosto” ou a corporeidade irrefutável do outro. Como se, em bons termos existencialistas, a experiência antecedesse o sentido.

A hipótese aqui é que é possível transcrever tal experiência fenomenológica de frente a frente dentro dos termos de uma economia do conhecimento. O princípio geral desta economia seria que, em situações extremas de sofrimento em presença, o acesso mais rápido ao outro é uma relação fulgurante de semelhança produzida a partir de uma fenomenologia homotética ou “de espelho”. Neste processo, o outro aparece irredutível, não a si mesmo (ego), mas à sua alteridade. Dito de outra forma, a economia do conhecimento é o reconhecimento. Nos termos de Lévi-Strauss, seu operador fundamental em situação de emergência não é a dissociação (produção da diferença), mas a associação (identificação, “volta ao mesmo”). Finalmente, o sofrimento em presença, como diria Levinas, aciona o reconhecimento do “humanismo do outro homem”.

É possível integrar o princípio desta economia do conhecimento para uma antropologia aplicada em contextos “humanitários” emergenciais. Foi o que tentei fazer na minha atuação com MSF no Haiti. A “missão” no contexto de epidemia de cólera era colaborar nas ditas atividades “outreach” na região montanhosa de Léogane (situada a uns 80 km de Porto Príncipe). Tais atividades consistiam em implementar programas emergenciais de sensibilização, adaptar as estratégias de resposta a epidemiologia, e pesquisar in situ as ditas “mortes comunitárias” (externas aos centros de tratamento da cólera) para identificar as causas (acesso, informação, isolamento social…) e logo, implementar respostas. Uma das dificuldades fora convencer a população que a cólera existia, que não se tratava de era uma diarreia como qualquer outra, e que realmente podia matar em poucas horas. A Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haïti (MINUSTAH) e a imensa maioria das ONG´s que atuam desde o terremoto

haviam iniciado um vasto programa de comunicação com o tema central que “a cólera não é vodu”. Portanto em um clima tenso, havia assim uma disputa sobre a origem –e logo de seu significado- da doença. “Kolera se yon politik”, “Cólera é política” podia-se ler nos muros de Porto-Príncipe, em eco ao rumor que o mal viria das próprias Nações Unidas para manter sua tutela sobre o país. Nos contextos rurais e populares, hesitava-se entre negar a existência da doença ou atribuí-la de fato a uma manipulação vodu. No início da epidemia, alguns hougans (autoridade religiosa do vodu) tinham sido mortos em represália. Atentas ao paradigma do relativismo cultural, ou pelo menos, a sua versão popularizada, as organizações internacionais pensavam que a “cultura local” era então um obstáculo ao tratamento e que havia a necessidade de restabelecer uma verdade profiláctica sobre crenças religiosas: “cólera não é vodu”. Muitos responsáveis se mostravam incomodados em interferir desta forma na “cultura local”, e nos termos destes, “pelo menos não digamos que vodu não existe”.

Dentro da base MSF de Léogâne, minhas recomendações como antropólogo eram esperadas. Porém, ficou logo bem claro que não haveria tempo para realizar uma antropologia da doença em geral e da cólera em particular. Não tivera nem um momento para abrir o livro de Alfred Métraux que havia levado para a ocasião. Também se evidenciou rapidamente que o discurso de sensibilização era contra produtivo: o cientista social podia pelo menos afirmar que na escala de uma epidemia, não havia tempo útil para agir sobre as representações religiosas, cuja força tinha sido decuplada pela maldição do terremoto. No centro de tratamento, quando chegavam a tempo, os pacientes queriam frequentemente interromper o tratamento e voltar para suas casas, convencidos que o mal era outro. Foi o caso de uma mulher jovem que tinha se convertido ao protestantismo e recusado de manter o templo vodu de seu pai falecido. Um homem que não tinha honrado sua promessa de luto se dizia perseguido pelo espírito de sua defunta esposa. Para estas pessoas, a cólera era apenas um detalhe, e quem dava importância a doença não entendia que o problema se tratava de algo bem mais amplo.

Afinal, se as pessoas resistiam desta forma, é porque a organizações internacionais que ali estavam atuando produziam um discurso sobre a origem da doença que não era aceitável ou pelo menos, sujeito a dúvidas e resistências. Estas organizações não percebiam que ao fazer da diferença cultural a chave do problema, elas estavam criando o próprio problema. Afinal, em contexto emergencial, não importa a origem que as pessoas contaminadas atribuam à doença, mas sim que saibam identificar a cólera como uma diarreia letal e o soro de reidratação como algo que deve ser integrado, pelo menos como parte do processo de cura. Muita gente saia curada do centro de tratamento convencidas que a origem do mal ainda estava presente (e tinham razão dadas às condições calamitosas da região), mas pelo menos não morriam da cólera, e do ponto de vista de MSF, era o que importava no momento. Todo o programa de sensibilização local foi então redesenhado segundo a ideia que não se falaria mais sobre a origem, mas somente sobre as consequências e as soluções. Ainda assim, a equipe local foi treinada para responder às perguntas que nunca cessaram: “se é vodu ou se não é, não sabemos, pode ser, mas para este tipo de diarreia, o tratamento médico é esse”. O nível de aceitação do tratamento melhorou muito.

Em termos antropológicos, a solução implementada procedeu desta economia do conhecimento caracterizada acima como o operador principal da situação de sofrimento em presença. Qualquer consideração sobre a diferença cultural mostrou-se dramaticamente contra produtiva. A solução era curto-circuitar o pensamento e o tratamento da diferença para encontrar o caminho mais curto. Entre o “não querer morrer” e o “não deixar morrer”, este caminho pode ser muito curto.

O “não deixar morrer”: a vida requalificada

Mas afinal, até que ponto tal economia do (re)conhecimento suspende a política do conhecimento? Em outros termos, em que medida a fenomenologia do sofrimento em presença vivenciada dentro do regime da interpelação ética apaga ou torna mais frouxas as fronteiras do poder e da dominação?

A discussão pode ser articulada a partir do conceito de “vida nua” elaborado por Giorgio Agamben, “o simples fato de viver” em oposição à “vida qualificada” que indica “a forma ou maneira de viver própria a um indivíduo ou grupo”. Para Agamben,

  • esta vida nua que é o objeto da soberania sobre o homo sacer, este refugiado, deportado ou banido em estado de exceção, exposto em silêncio às forças de correção, encarceramento ou morte de uma biopolítica tratando-o como simples vivo. Partindo da ideia de Foucault segundo quem “o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vidente” (Foucault apud Agamben, p. 110), Agamben define o nomos da modernidade como o momento no qual onde a questão se estendeu “ao corpo biológico de cada ser vivente”.

Tratado “sem fronteiras”, com “neutralidade” e “imparcialidade” o homo humanitário aparece de fato como reduzido a uma vida biológica em risco de apagamento. A geopolítica da ação humanitária, imprimida sobre a filigrana dos passados coloniais bastaria a se convencer de que “salvar vidas” seria o recanto último da biopolítica descrita por Agamben: um “não deixar morrer”. Afinal, o “nós” imediatamente operacional que a economia do conhecimento no sofrimento em presença permite estabelecer é temporário e precário. Não se trata aqui de nenhum Éden conceitual, que fala de uma fraternidade reencontrada na adversidade. O poder, a representação, o jogo estão logo aí. A situação remete mais ao que Goffman descrevia sobre o gênero no espaço público: « with-then-apart », juntos e logo separados (1977). Mas ainda assim, essas situações funcionam temporariamente como um F. Barth (1969) ao inverso: como momentos esporádicos onde a relação passa pela suspensão das fronteiras. De fato, de ambos os lados, os marcadores culturais e sociais não desaparecem, e nunca o outro deixa de ver a roupa branca do homem branco, mas a relação não se reduz a isso. Sem descaracterizar em nada o poder soberano que paira sobre o homo sacer, a experiência da ação humanitária de emergência incita então a formular outra hipótese.

Como resume Agamben, a vida nua tem, na política ocidental, este singular privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens (p.15). A hipótese é que justamente, o “não deixar morrer” é a afirmação que é pela luta contra esta exclusão que se pode atacar este privilégio e restabelecer o universo da vida requalificada. Frente à politização da vida nua, o sofrimento em presença poderia ser problematizado então como um contra-biopoder.

O conceito de “vida sem valor” (ou “indigna de ser vivida”) era aplicado pelo jurista alemã Blinding aos indivíduos que eram considerados “incuravelmente perdidos”. Justamente, Agamben faz da decisão sobre o valor ou o desvalor da vida a “estrutura biopolítica fundamental da modernidade” (p. 133). O conceito de “vida sem valor”, diz o autor, corresponde “ponto por ponto” à vida nua do homo sacer e por isso pode ser estendido “bem além das fronteiras imaginadas por Blinding”. Nesta base, podemos avançar a ideia de que a situação humanitária de frente a frente –sem fronteiras-funciona como uma inversão simétrica da figura do homo sacer. Primeiro porque a inversão corresponde a uma “involução” como diria Lévi-Strauss a partir do mesmo invariante central: no caso, a vida nua. Agamben tem razão quando diz que as organizações humanitárias mantêm “a contragosto uma secreta solidariedade com as forças que deveriam combater” (p. 130). Isso porque a ajuda e proteção que fornecem ainda procedem desta redução à vida nua de seres insacrificáveis e matáveis. As organizações, mesmo “sem fronteiras” acabam então reproduzindo a lógica do campo, desta vez humanitário, “espaços puros da exceção” frente à lógica do campo generalizado dentro do qual o biopoder dispõe de suas vidas desnudadas. Mas ainda assim, o “não deixar morrer” humanitário surge como inversão simétrica da “vida indigna de ser vivida”. Frente ao homo sacer insacrifícavel e matável, opõe-se a afirmação que matar é sempre sacrificar, reabilitando desta forma uma dimensão sacra à figura do homo. Ora, se há sacrifício, a vida deixa de ser nua, e reencontra alguma forma, mesmo mínima, de qualificação.

É justamente por que a ação humanitária opera por inversão da figura do homo sacer que em situação de sofrimento em presença, as manifestações múltiplas da “vida sem valor” desafiam perigosamente a ética prática do agente. Um dia, fui chamado para investigar o caso de um garoto de 12 anos encontrado morto no meio de um campo de deslocados situado a apenas três quilômetros do Centro de Tratamento da Cólera de Léogane. O menino vivia sozinho numa barraca após a morte de sua família no terremoto. Com cólera, tinha passado o dia vomitando numa vasilha. Perguntei aos vizinhos porque ele não foi levado ao centro. A resposta que recebi foi: “ele era HIV positivo, a gente deixou morrer. Era melhor assim”. O corpo estava estendido na lama, no corredor estreito separando as barracas. Os vizinhos me pediram para tirar o lençol que cobria o corpo. Encoberto de vômito, o rosto era indecifrável. Não se trata aqui de averiguar os motivos deste “deixar morrer”, mas de resgatar uma dessas situações nas quais o agente encontra-se frente ao homo sacer. Nesse momento, a indignação e a reflexividade podem voltar com força e incapacitar a ação de forma momentânea, o tempo para se “blindar” de novo, ou permanentemente, quando o agente entra no colapso do burnout. O encontro com o homo sacer é uma experiência fenomenológica tão desafiadora justamente porque se situa num registro exatamente oposto ao do sofrimento em presença pelo qual a relação humanitária se estabelece.

Voltaríamos então a uma concepção sacralizada do humano e da vida, e com essa as eternas questões sobre o humanismo e sua epistemé, o humanitarismo, seus dogmas e sua geopolítica. Talvez seja para se extrair –mesmo de maneira fugaz- dessas questões que uma antropologia do sofrimento em presença é fundamental. Nessas situações, o “não deixar morrer” aparece menos como mais uma injunção do biopoder do que como a resposta mais curta ao “não querer morrer” da pessoa que esta na frente. Ou seja, em tal situação, o “não deixar morrer” nunca é metafísico, ontológico, vitalista, etc., ele é dialético.

O agente humanitário de terreno sabe bem que quando em situações extremas, a dialética é impossível e a morte é de fato aceita pela pessoa em co-presença, isso acontece dentro do registro sacrificial em nome de um bem tido como maior que a vida. Mas é porque nesses casos particulares a vida nunca é nua, mas ao contrário profundamente qualificada, que já saímos do registro humanitário do sofrimento em presença. Aliás, se opondo à matabilidade das vidas nuas, a ação humanitária de emergência resgata ao mesmo tempo a dimensão sacrificial daqueles que consentem à sua própria morte. Parafraseando a fórmula da Spivak (1988), é somente com este resgate que homo sacer pode falar.

Referências bibliográficas

Agamben, Giorgio (1998), Homo Sacer, le pouvoir souverain et la vie nue

Barth, Frederik (1969), Ethnic groups and boundaries, Universitetsforlaget, Oslo.

Boltanski, Luc (2007), La souffrance à distance. Paris, Gallimard.

Bourdieu, Pierre (1980), Le sens pratique. Paris, Editions de Minuit.

Corcuff, Philippe (1998), « Justification, stratégie et compassion : Apport de la sociologie des régimes d’action », Correspondances (Bulletin d’information scientifique de l’Institut de Recherche sur le Maghreb Contemporain), Tunis, n°51.

Fassin, Didier (2010), La raison humanitaire. Une histoire morale du temps présent.

Paris, collection « Hautes Études », Gallimard/Seuil.

Goffman, Erving (1977), “The Arrangement between the Sexes”, Theory and Society, Vol. 4, No. 3 (Autumn, 1977), pp. 301-331.

Levinas, Emmanuel (1961), Totalité et infini, éd. Le Livre de Poche, 1990

Spivak, Gayatri Chakravorty (1988), “Can the Subaltern Speak?” in Cary Nelson and Larry Grossberg, eds. Marxism and the interpretation of Culture, University of Illinois Press.

Véran, Jean-François (2012), « Old Bones, New Powers ». Current Anthropology , Vol. 53, No. S5,pp. S246-S255

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