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“Uma abordagem processual dos dispositivos”, por Nicolas Dodier

dispositif

Por Nicolas Dodier (EHESS, França)

Tradução: Diogo Silva Corrêa e Carlos Gutierrez

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Conferência proferida no I Colóquio Crítica e Pragmatismo, na Universidade de Brasília, em agosto de 2016.

Uma série de pesquisas em torno de uma questão central, a reparação de acidentes médicos, nos convenceu, Janine Barbot e eu – Nicolas Dodier -, da importância da noção de dispositivo para pensar essa questão. Nos parece, assim, possível abordar, a partir de um mesmo conceito, montagens diversas (processos, fundos de indenização, apoios associativos, instrumentos midiáticos, etc.) que desempenham um papel central nas dinâmicas de reparação. O uso dessa noção pode tirar partido das contribuições de várias correntes de pesquisa: os trabalhos de Michel Foucault, desenvolvido por numerosos estudos foucaultianos, o science studies, a sociologia pragmática, inúmeros trabalhos em sociologia econômica, etc. Mas o exame desses trabalhos coloca igualmente em evidência uma necessidade de clarificação conceitual, e certos problemas encontrados no caminho. Essa será a primeira etapa da minha apresentação. Em uma segunda etapa, eu irei propor alguns elementos apoiados em um método que se pode considerar como uma sociologia processual dos dispositivos. Nós publicamos esse método recentemente em um artigo da revista Annales. Histoire et Sciencies Sociales (2016, n°2).

Os resultados de uma pesquisa conceitual

A noção de dispositivo foi utilizada para pensar agenciamentos de elementos heterogêneos que não podem ser reduzidos às grandes categorias de seres sociais geralmente estudadas nas ciências sociais. Alguns trabalhos colocaram ênfase sobre a importância de se levar em consideração os objetos “materiais” em suas estreitas relações com os seres sociais (Boltanski & Thévenot, Lascoumes & Le Galès). Outros trabalhos insistiram sobre as associações entre humanos e não humanos (Callon & Latour). Outros, ainda, preconizaram um método que fosse aberto ao conjunto de ingredientes que constituem essas montagens, sem encerrá-los em categorias prévias (Foucault). Esse acento na heterogeneidade de certos agenciamentos é uma exigência metodológica heurística. Partindo, por exemplo, do estudo de regras ou de normas, ela abre o olhar para os objetos que subentendem seus usos. Partindo, por outro lado, da descrição de objetos, ela permite colocar em evidência as regras e as normas que a esses últimos estão ligadas (nos modos de uso, padronizações, regulamentos que os acompanham).

No entanto, uma questão se coloca: como descrever, nessas condições, as interações entre os humanos e os dispositivos? Duas estratégias até o presente foram privilegiadas. A primeira consiste em estar aberto ao conjunto de mediações que são mobilizadas nessas interações. É a orientação sugerida pela teoria do ator-rede. Esses trabalhos procuram levar em consideração o conjunto de “forças” que mantém as redes sociotécnicas. Essa estratégia depara-se com a dificuldade de construir as linguagens e as ferramentas que permitem apreender o conjunto dessas forças, enquanto nada é previsto para limitar o quadro de descrição nas ciências sociais. Uma segunda estratégia consiste em descrever de modo muito detalhado os elementos não linguísticos dessa interação entre humanos e não humanos. Um certo número de noções e métodos foram concebidos com essa intenção: prises (Bessy e Chateauraynaud), familiaridade (Thévenot), affordances (Gibson), elementos indexicais (Suchman, De Fornel), etc. Essa segunda estratégia, por sua vez, é confrontada com a dificuldade de articular esse nível de detalhe na descrição com níveis de descrição mais agregados.

Nós propomos uma outra estratégia que consiste em centrar a análise sociológica das interações entre humanos e não humanos em um nível de descrição mais facilmente controlável: o trabalho normativo dos atores em torno dos dispositivos. Por trabalho normativo, nós entendemos, de uma maneira geral, as avaliações, positivas ou negativas que os indivíduos fazem do estado de coisas. Nós nos preocupamos aqui, portanto, com as avaliações que os indivíduos fazem sobre os dispositivos, ou com as condutas dos outros atores no contato com os dispositivos. A questão central torna-se, nessa perspectiva, o lugar dos dispositivos na construção da normatividade.

Além de sua heterogeneidade interna, os dispositivos apresentam uma segunda propriedade interessante para as ciências sociais: uma relação dual em relação aos ideais. Certos autores insistiram sobre o fato de que os dispositivos veiculam ideais. O modo como dispositivos são constituídos reflete os valores, as normas, os modelos societários que seus autores investiram em sua elaboração (Lascoumes e Gales). Outros autores insistiram, ao contrário, no fato de que os dispositivos mergulham na imanência das práticas. Esses dispositivos guiam a atividade de tal modo que as pessoas não se interrogam sobre ideais, ou sobre modelos, o que lhes colocaria frequentemente em uma complexidade inextrincável, mas que elas, as pessoas, apenas efetuam os cálculos que lhes permitem seguir adiante (Callon e Muniesa). Nós pensamos que é importante conjugar essas duas perspectivas na análise dos dispositivos: estar atento aos momentos no curso dos quais, confrontados com dispositivos, os indivíduos experimentam a necessidade de se referirem a ideais; saber dar conta dos momentos nos quais essa referência perde sua pertinência em prol de pontos de localização da atividade de alcance mais curto.

Os dispositivos apresentam uma terceira propriedade: são entidades que os atores dotam de finalidades. Pode-se distinguir a esse respeito duas grandes abordagens nas ciências sociais. A primeira é uma abordagem “funcional”. O próprio pesquisador atribui, então, uma finalidade ao dispositivo que ele estuda. Ele considera nessa abordagem que a existência de dispositivos, assim como a forma que eles assumem, se explica pelo fato de que os humanos devem realizar operações essenciais para a vida social, e que eles precisam de dispositivos para realizar essas operações. Os dispositivos são, então, definidos e discernidos por essas funções que lhes são, de algum modo, consubstanciais: construir acordos, assegurar a existência e o funcionamento de um mercado (Karpik), resolver uma contradição estrutural (Boltanski), produzir interesse de outros atores em torno da questão da inovação, etc. A segunda abordagem pode ser qualificada como “estratégico-crítica”. O pesquisador atribui ao dispositivo uma função estratégica escondida, subjacente. É, por exemplo, o ponto de vista de Foucault quando ele atribui a cada dispositivo uma “função estratégica dominante”. Essa função estratégica pode, por vezes, consistir em satisfazer os interesses de um ator específico. Mas ela pode igualmente consistir em assegurar essa função escondida pela conjugação de atividades desempenhadas por um sistema de atores em interdependência uns com os outros. Essas duas abordagens (funcional, de um lado, e crítico-estratégica, de outro) apresentam um limite: elas correm o risco de considerar como epifenômenos as finalidades que os próprios atores atribuem aos dispositivos. Nós preferimos, por essa razão, evitar atribuir, nós mesmos, finalidades aos dispositivos, e assim sermos mais receptivos ao estudo das finalidades que os atores lhes atribuem. Essas finalidades são, com efeito, frequentemente diversas, e por vezes contraditórias. A atribuição de finalidades é um componente essencial do trabalho normativo dos atores, e deve ser estudada enquanto tal.

As grandes linhas da abordagem escolhida

Apoiando-nos sobre os elementos que precedem, nós propomos uma abordagem “processual” dos dispositivos. Essa passa, antes de tudo, por uma definição. Nós entendemos designar sobre o termo dispositivo um encadeamento preparado de sequencias destinado a qualificar ou a transformar estados de coisas por intermédio de um agenciamento de elementos materiais e linguísticos. Essa definição sublinha vários aspectos. Primeiro, ela compreende finalidades suficientemente amplas para não bloquear o estudo das atribuições de finalidade pelos atores. “Qualificar o estado de coisas” remete ao fato de que os dispositivos podem estar à serviço da realização de “provas”, como sublinhar a sociologia dita “das provas”. Mas leva-se igualmente em consideração o fato de que, além de qualificar estados de coisas, ou mesmo sempre produzir qualificações, os dispositivos podem agir sobre os estados de coisas, portanto transformá-los. Nós chamamos a atenção para a heterogeneidade interna dos dispositivos direcionando o olhar para os elementos tanto materiais quanto linguísticos que os constituem (e às associações estreitas entre essas duas ordens de realidade).

Nós prestamos atenção particular à extensão temporal na implementação dos dispositivos. Por sua consistência interna, os dispositivos preparam encadeamentos. Isso não quer dizer que eles determinem inteiramente tais encadeamentos, mas sim que eles exercem certas coerções sobre os indivíduos ao longo de uma sucessão de sequências, que lhes oferecem ao mesmo tempo apoios para agir em uma certa duração, ou para conceber bifurcações entre vários caminhos possíveis. Essa extensão temporal deve ser levada em consideração qualquer que seja o papel exercido pelo indivíduo considerado: autor, realizador, alvo. Os autores dos dispositivos antecipam e concretizam os “scripts” (Akrich) que os dispositivos são tidos como capazes de assegurar. Os indivíduos afetados pela execução dos dispositivos estão necessariamente em interdependência estreita com os indivíduos que asseguram essa realização além ou aquém de sua própria sequencia de intervenção. Os indivíduos que são os alvos dos dispositivos são confrontados com esses por uma certa duração. Essa pode ser, por vezes, muito breve, mas em outros casos pode englobar toda uma trajetória biográfica (certos procedimentos judiciários, certos dispositivos médicos, etc.).

Uma abordagem processual chama a atenção para a importância de as ciências sociais não se focalizarem nos outputs dos dispositivos (as decisões, as produções, etc.), mas de levar em consideração o conjunto de sequencias que balizam a realização de cada dispositivo, e o trabalho normativo conduzido pelos indivíduos ao longo dessas sequencias. Nessa perspectiva, a pesquisa combina duas linhas de investigação. A primeira examina como os próprios atores problematizam a realidade. Examinando o trabalho normativo, nós conseguimos identificar os ingredientes do dispositivo que são pertinentes para os próprios atores. Na segunda linha de investigação, o próprio sociólogo, na condição de observador, busca identificar as solidariedades existentes entre os elementos por sistemas remissões que avançam pouco a pouco: um objeto contém um texto, o qual, ele mesmo, remete a outros textos; uma palavra remete a outras palavras para ser verdadeiramente compreendida; uma regra remete a um software, etc. Essas duas linhas de investigação remetem uma à outra. Os ingredientes do dispositivo emergem, assim, progressivamente na dinâmica da pesquisa assim criada. A pesquisa não visa descrever a totalidade de um dispositivo, mas mostrar quais elementos dos dispositivos enquadram o trabalho normativo e são ativados por ele. O trabalho normativo e a composição do dispositivo se revelam um ao outro de modo interativo.

O interesse por uma entrada pelo trabalho normativo vem do fato de que ele pode desenvolver, em certas condições, as bases relativamente estáveis sobre as quais repousa esse trabalho. É com essa intenção que nós introduzimos a noção de repertório normativo, isto é, o conjunto de expectativas normativas às quais se referem os atores em suas avaliações positivas ou negativas em torno de um dispositivo, assim como os esquemas de julgamento que esses atores produzem relativamente a essas expectativas. A noção de repertório tem o mérito, nas ciências sociais, de permitir realizar uma análise da normatividade quando as expectativas às quais se referem os atores são heterogêneas. Ela nos parece, então, mais heurística do que as noções concorrentes de sistema, de cultura ou de modelo. Três usos dessa noção de repertório podem ser discernidos.

A primeira abordagem é “estratégica”. Ela define o repertório como conjunto de recursos que os atores mobilizam em prol de uma dada estratégia. Ela corresponde a uma abordagem em dois tempos: em um primeiro momento, o pesquisador identificou as grandes linhas de uma estratégia do ator ou de um grupo de atores; em um segundo momento, ele mostra como o ator concebe e mobiliza o repertório de recursos que ele coloca a serviço dessa estratégia. É nesse sentido que Charles Tilly fala de “repertório de ação coletiva” e que Ann Swidler fala de “repertório cultural”. A segunda abordagem em termos de repertório é “fundacional”. Ela considera que se pode encontrar a referência fundadora que está na raiz de um repertório (um princípio, um critério de avaliação, …). A hipótese é, então, que um repertório extrai sua coerência desse princípio fundador (Boltanski e Thévenot, Lamont e Thévenot, Lemieux sobre as gramáticas). A terceira abordagem é “globalizante”. Ela considera que se pode identificar um repertório por uma categoria ou por um dado número de atores. É assim que Comaroff e Roberts falam de um “repertório normativo” de uma sociedade, para fazer referência ao conjunto de normas que regem as condutas nessa sociedade, sabendo que se pode existente entre essas normas ou entre esses julgamentos que a elas fazem referência, tensões e contradições. Na abordagem fundacional, as tensões principais são “entre” os repertórios, pois elas remetem a oposições no nível dos próprios princípios de avaliação. Na abordagem globalizante, as avaliações são necessariamente produzidas no interior do repertório, e nada exclui que elas próprias sejam atravessadas por tensões.

Nossa análise das interações entre indivíduos e dispositivos nos aproxima da terceira abordagem. Pela noção de repertório normativo, nós procuramos dar conta do que estrutura o trabalho normativo de uma dada categorias de atores em torno de um dispositivo. Nós consideramos que essa base remete a expectativas que não possuem por vocação serem congruentes umas com as outras, nem de remeter a um principio fundador. Nós também não presumimos o que é comum ao conjunto de indivíduos de uma dada categoria, e o que os diferencia. Isso nós descobrimos e explicamos progressivamente. Uma tal análise se faz, em um primeiro momento, com uma decomposição analítica dos esquemas de julgamentos. Trata-se, nesse estágio, de identificar a ou as diferentes expectativas às quais se referem os indivíduos quando eles realizam a tal ou tal avaliação particular. E de localizar o ou os esquemas de julgamentos que nas expectativas se manifestam. Em um segundo momento, a abordagem se pretende mais global. Identificar o repertório normativo é dar uma imagem global do conjunto de expectativas e de esquemas de julgamentos que estruturam o corpus de avaliações que foi reunido.

A identificação de um repertório normativo supõe que se esteja aberto a avaliações enunciadas pelos atores em torno de um dispositivo em um dado contexto. Essas avaliações remetem a expectativas diversas. E os próprios julgamentos produzidos frequentemente se mostram, em um primeiro momento, muito variados. E não é senão progressivamente que regularidades começam a aparecer. Pode-se considerar que um repertório foi identificado quando as observações “saturam”, no sentido de Barney Glaser e Anselm Strauss, isto é, quando são sempre os mesmos esquemas de julgamentos que tendem a retornar. Essa fase de saturação sobrevém mais ou menos rapidamente, em função sobretudo do grau de complexidade do repertório em questão.

Um objetivo da análise é de poder estabelecer assim, ao mesmo tempo, o que é comum aos atores em seu posicionamento em torno de um dispositivo, e o que, nesse quadro comum, os diferencia e até mesmo os opõe. Nessa abordagem, não se define de antemão o que é compartilhado pelos diferentes atores, o que só se descobre progressivamente, se é que esses atores compartilham efetivamente certas bases comuns de avaliação. E se descobre nessa base comum (quando ela existe) o que explica as divergências ou convergências entre os atores.

Nós estabelecemos como hipótese nessa abordagem que os indivíduos possuem uma certa exterioridade normativa com relação aos dispositivos. Eles se deparam com dispositivos, mas é em função de bases normativas que não estão desde sempre disponível nos dispositivos que eles se posicionam frente a esses últimos. O método leva em conta essa desvinculação relativa entre dispositivos e repertórios normativos. Ela coloca como objeto central a interação entre dispositivos e repertórios. É uma diferencia com a abordagem foucaultiana, que tende a conceber o dispositivo como uma entidade englobante, no interior da qual os indivíduos ou grupos organizam suas práticas e problematizam o mundo. É igualmente uma diferencia com relação à sociologia pragmática dos regimes de engajamento que estabelece como hipótese a existência de uma correspondência entre certas categorias de dispositivos e certos repertórios (ou certas gramáticas) no interio de uma mesma ordem (ou mundo comum).

Essa desvinculação entre dispositivos e repertórios normativos explica que a abordagem possa ser considerada como processual em um segundo sentido. A abordagem procura, com efetivo, dar conta das mudanças que podem ser produzidas por essa confrontação entre dispositivos e repertórios. Os dispositivos geram repertórios normativos. E os indivíduos, investindo nos dispositivos a partir de esquemas de julgamento não necessariamente congruentes, podem exercer sobre eles formas de pressão suscetíveis, em certas circunstancias, de transformá-los. A abordagem se interessa por essas dinâmicas, tanto na escala biográfica quando na escala histórica.

Um exemplo: os dispositivos de reparação

Nós desenvolvemos essa perspectiva buscando tratar a seguinte questão: de que maneira os atores se unem para reparar as aflições? Nós estamos focados sobre uma classe particular de aflições: os prejuízos ligados à atividade médica. Nós apresentamos essa questão em duas investigações articuladas uma a outra: quais são os dispositivos mobilizados para reparar as aflições? Qual é a rede de finalidades e de exigências associadas a esses dispositivos ou às condutas em relação a esses dispositivos? Nossa abordagem tende a distinguir cada um desses dispositivos (e, portanto, o posicionamento dos atores em relação a este ou aquele dispositivos) antes de considerar o trabalho normativo elaborado na intersecção desses.

Três pesquisas foram realizadas nessa perspectiva. A primeira trata do trabalho normativo de profissionais do direito em relação ao processo penal, e mais especificamente em torno de uma questão problemática: o lugar das vítimas no processo penal (Revue française de science politique 2014, Sociologie du travail 2014). A segunda trata do trabalho normativo das vítimas de uma catástrofe de saúde pública, particularmente frente a um fundo de indenização financeira (Human Studies 2014, Droit et Société 2015). A terceira trata das transformações de longo prazo (séc XIX a XX) das condições de reparação dos acidentes médicos (Barbot, Memorial para habilitação a orientar pesquisas, 2016).

A primeira pesquisa parte da constatação segundo a qual os profissionais do direito engajam um trabalho normativo complexo para definir o lugar que as vítimas devem ocupar em um processo penal. Esse trabalho normativo mobiliza, de sua parte, interrogações sobre as finalidades que o processo penal visa, e sobre os princípios que um processo penal deve respeitar para se desenvolver de uma maneira correta. Nós estudamos esse trabalho normativo dos profissionais do direito em duas arenas distintas. De início, examinamos o trabalho doutrinal de juristas a respeito do lugar das vítimas, apoiando-nos no estudo de artigos de revistas ou de obras de direito (na França e nos Estados Unidos) (Revue française de science politique). Em seguida, examinamos a maneira pelas quais os advogados voltam-se a suas alegações sobre os testemunhos das vítimas, no caso de um processo onde esses testemunhos, numerosos, tinham ocupado um lugar central no curso da audiência (Sociologie du travail).

Em relação à arena doutrinal, percebemos também que todos os juristas se referem a uma rede de expectativas comuns (objetividade do julgamento penal, equidade de decisões, dosagem de equilíbrios dos sofrimentos infligidos aos protagonistas do processo), mas as oposições surgem quanto à maneira de satisfazer cada uma dentre elas. Relevamos que certas expectativas são mais determinantes que outras na estruturação “política” dessas oposições, de onde o caráter central, falando politicamente, da oposição doutrinal entre os juristas mais “repressivos” e dos juristas mais “liberais”. No que concerne à arena da audiência, nós colocamos em evidência, a partir de um trabalho etnográfico, o que partilham todos os advogados engajados em um grande processo de saúde pública, mas igualmente o que opõe os advogados, nesse quadro partilhado, são os papéis diferentes que ocupam nesse dispositivo, segundo, por exemplo, o fato de ser advogado de partes civis ou advogados da defesa.

Mostramos igualmente os deslocamentos do repertório normativo quando passamos de uma arena a outra, por exemplo, da arena doutrinal à arena da audiência. Assim, a exigência de compaixão em torno das famílias das vítimas presentes na audiência foi o centro do trabalho normativo no desenrolar do processo que nós observamos, notadamente através da questão de sua articulação com a exigência de objetividade. Essa exigência foi colocada por todos os advogados em suas alegações. Por outro lado, ela foi pouco invocada pelos juristas que contribuem no trabalho doutrinal sobre o processo, alguns defendendo um distanciamento muito radical das emoções (posição ausente na audiência). Inversamente, a finalidade “terapêutica” do processo, regularmente colocada anteriormente por alguns juízes na arena doutrinal, não foi mais invocada como uma finalidade legítima pelos advogados na audiência.

A segunda pesquisa estuda o trabalho normativo das vítimas face a um outro dispositivo: um fundo de indenização implementado pelo poder público, em decorrência de uma catástrofe de saúde pública. Nós nos interessamos, como Viviana Zelizer ou Marion Fourcade, às tecnologias que visam estabelecer o valor financeiro dos danos e as relações que as pessoas afetadas podem manter face a essas tecnologias. Colocamos em evidência as expectativas que estruturam o conjunto de avaliações das vítimas face às propostas de indenizações. A primeira é uma expectativa de socorro em relação aos gastos causados pelo dano, como acontece no caso que estudamos, a ocorrência de uma doença neurodegenerativa transmitida por tratamentos. Uma parte das avaliações relativas ao dispositivo diz respeito sobre sua capacidade de proporcionar, com urgência, auxílio financeiro às famílias que enfrentam os custos causados pela irrupção dessa doença. Contudo, as pessoas não se posicionaram da mesma maneira com relação a essa expectativa. Certas diferenças são estreitamente ligadas a seu estatuto socioeconômico; outros remetem, por exemplo, ao estado de organização da assistência social e terapêutica no momento em que a doença é declarada.

A segunda expectativa é uma expectativa de justiça, entendida como a manifestação das responsabilidades morais na ocorrência do drama e, se for o caso, como sanção aos culpados. As pessoas também avaliaram, paralelamente às apreciações em termos de socorro, até que ponto os fundos de indenizações podiam contribuir para a manifestação da verdade moral ou ao contrário se opor. Essa avaliação do fundo de indenização à luz de uma expectativa de justiça tomou, no caso desse drama, uma acuidade particular. Com efeito, um procedimento judiciário já havia sido aberto no momento da criação do fundo pelo governo e as primeiras acusações contra personalidades dos mundos médicos e sanitários tinham sido pronunciadas. Para justificar a criação de um fundo (propondo uma indenização sem que seja necessário provar a existência de culpa na fabricação dos tratamentos), o governo tinha invocado a expressão da “solidariedade nacional” em relação às vítimas e suas famílias. Nesse contexto, muitas famílias suspeitaram que o governo queria desviá-los do procedimento judicial. O exame do trabalho normativo permite mostrar de que maneira a tensão moral suscitada por essa expectativa de justiça foi gerada por pessoas que, contudo, aceitaram ser indenizadas pelos fundos.

Enfim, as famílias das vítimas referiram-se a uma terceira expectativa, uma expectativa de compensação ajustada. Nós colocamos em evidência todo o trabalho que elas implementaram para formular o sentido que podia ter essa indenização financeira como contrapartida de seu dano. As famílias que aceitaram o fundo queriam superar o transtorno moral gerado pelos julgamentos de incomensurabilidade entre as somas recebidas e a natureza de suas expectativas (neste caso as expectativas ligadas à doença e à perda de uma criança). De uma maneira geral, para além das finalidades atribuídas ao fundo por seus criadores, a pesquisa mostra uma variedade de expectativas sob as quais os beneficiários construíram sua própria avaliação desse dispositivo e geriram as tensões que eles geraram.

A terceira pesquisa, conduzida por Janine Barbot, trata das transformações de longo prazo, do início do século XIX aos anos 2000, na França, das condições de reparação de acidentes, no sector específico das atividades médicas. Nessa perspectiva, duas linhas de análise foram articuladas: a análise de transformações dos dispositivos em longo período de tempo, e a análise do posicionamento de diferentes atores em torno desses dispositivos. É uma diferença importante com a abordagem, mais foucaultiana, que François Ewald elaborou, em sua obra “L’Etat-providence”, para pensar a transformação das condições de reparação em um outro setor, aquele dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais. Para Ewald, a oscilação que se opera nesse setor no fim do séc. XIX diz respeito a um mesmo bloco de dispositivos, categorias, leis e práticas: tudo se passa como se a sociedade passasse globalmente de um paradigma de responsabilidade a um outro. Contrariamente, nós pensamos ser mais útil dar conta dos efeitos, sobre a dinâmica da história, dos desacoplamentos entre dispositivos e repertórios normativos. Partindo dessas transformações conjuntas, podemos esclarecer sob uma nova perspectiva a história conjunta das instituições médicas, judiciárias e seguradoras.

Perspectivas

O método que nós propomos é destinado a pensar o lugar dos dispositivos no exercício da normatividade. Esse método pode se estender segundo diversas ordens de temporalidade. Ele pode incidir sobre a implementação de cada dispositivo, aqui considerado como o conjunto de recursos que, agenciados uns aos outros, preparam, sem determiná-lo, um encadeamento de sequências. É então o trabalho normativo sobre e no dispositivo durante o tempo de seu exercício, que está no centro da análise. Podemos abordar igualmente com esse método o tempo biográfico de cada indivíduo. A trajetória de um indivíduo é então concebida como confrontação simultânea e sucessiva a um conjunto de dispositivos marcantes. Examinando o trabalho normativo dos indivíduos no contato com os dispositivos que os visam, discernimos ao mesmo tempo os efeitos do dispositivo sobre esses indivíduos e a maneira pela qual, em troca, eles o investem e, em alguns casos, o influenciam. Enfim, podemos tratar sob o ângulo de uma temporalidade histórica, o jogo cruzado dos dispositivos e dos repertórios normativos que se relacionam a eles.

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