o método na loucura séries

O método na loucura (1): uma série sobre ambivalências na psicologia da criatividade em arte e ciência, por Gabriel Peters

 Por Gabriel Peters

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Introdução

Loucura embora, tem lá seu método
William Shakespeare (na boca de Polônio em Hamlet)

Domine o instrumento, domine a música, depois esqueça essa porra toda e toque
Charlie Parker

Em O melhor do mau humor (1993), coletânea de rabugices espirituosas organizada por Ruy Castro, há uma citação venenosa atribuída ao ensaísta britânico Samuel Johnson. Numa carta a um aspirante a escritor que havia lhe mandado um manuscrito, o veterano crítico literário teria afirmado:Sir, seu manuscrito é bom e original, mas a parte que é boa não é original, e a parte que é original não é boa”. Embora Johnson fosse mais do que capaz de ditos maliciosos, almas pacientes que procuraram a origem dessa pancada verbal não a encontraram em suas obras ou nos registros biográficos que dele fizeram seus contemporâneos. Pouco importa. Crueldade à parte, a réplica serve como um lembrete para a análise da criatividade em arte ou ciência: invenções artísticas ou científicas tornam-se influentes não apenas porque são novas, mas porque sua novidade é tida como valiosa segundo os critérios de uma audiência de receptores e juízes.

Um dos motivos que tornam a realização criativa tão difícil é o fato de que os atributos “originalidade” e “valor” frequentemente resistem ao casamento e, pior ainda, empurram a cientista ou a artista em sentidos opostos. É por isso que essa união improvável tende a resultar de dificílimas dialéticas da criação, isto é, de sínteses felizes entre as facetas em tensão no processo criativo: rebelião e conformidade; autoconfiança e autocrítica; inspirações súbitas e transpirações pacientes; “loucura” e “método” (diria Shakespeare); estilos “dionisíacos” e estilos “apolíneos” de pensamento (diria Nietzsche); associações livres do “processo primário” e associações regradas do “processo secundário” (diria Freud). De um lado, a expressividade liberta, a inventividade lúdica e relativamente desregrada; de outro, as exigências rigorosas que regulam a manifestação dessa inventividade em uma obra (um artigo científico, uma pintura, um texto literário, um teorema matemático etc.) reconhecida como tal em certo domínio simbólico (ciência, pintura, literatura, matemática etc.). Os graus em que a imaginação “louca” e o rigor “metódico” se combinam em realizações criativas é altamente variável, e pode inclusive ser tomado como chave de interpretação de diferentes estilos de criação. Assim, para ficarmos no exemplo mais óbvio (ah, a preguiça…), a literatura do romantismo salta às páginas como exacerbação do aspecto livremente expressivo do trabalho artístico, em detrimento da preocupação escrupulosa com a construção formal. Em contraste, como diz Paul Valéry, “parnasianos e realistas consentirão em perder em intensidade aparente, em abundância, em movimento oratório o que ganharão em profundidade, em verdade, em qualidade técnica e intelectual” (Valéry, 2007: 23).

A menção ao caráter “dialético” da tensão entre “loucura” e “método” nas realizações criativas reconhece quão escorregadias são as tentativas de combinar ambos os ingredientes em um único trabalho. Uma intensificação da expressividade livre frequentemente contribui para a originalidade da obra, mas apenas sob o risco de torná-la incompreensível segundo os esquemas vigentes de interpretação ou intolerável segundo as regras correntes de atribuição de valor (“isso não é arte”, “isso não é ciência”, “isso não é sociologia” etc.). Por outro lado, o excesso de zelo na obediência às normas do domínio artístico ou científico, no mesmo passo em que incrementa a “aceitabilidade” de uma obra, tende a diminuir seu componente de originalidade. E o retrato fica ainda mais complicado quando inserimos nele o fator “tempo”, com seu farto estoque de exemplos de obras inicialmente rejeitadas como “desvios” inaceitáveis em relação às normas do campo, mas posteriormente consagradas como inovações decisivas – a mudança radical na fortuna crítica dos pintores impressionistas é didática quanto a esse aspecto (Gladwell, 2015: cap.3).

Variação louca e seleção metódica: notinha “darwiniana”

À parte o “fiat lux” divino que abre o Livro do Gênesis, nenhuma inovação surge do nada. Ao contrário, toda criação histórica é um produto novo da combinação de elementos já existentes. Tanto a inovação científica quanto a artística são processos que a teoria sociológica denominaria de emergentes, isto é, processos em que um arranjo singular de componentes gera algo distinto de qualquer desses componentes considerado isoladamente: uma infinidade de peças musicais diferentes pode ser composta a partir de um número restrito de notas, uma montanha de textos literários emerge de um mesmo estoque disponível de palavras, e assim por diante. Nesse sentido, os criadores têm de ter à sua disposição, no ambiente sociocultural em que se encontram, um conjunto de elementos que empregarão no seu trabalho criativo. Tais ingredientes da criação podem ser materiais, como os artefatos técnicos que vão do pincel ao microscópio, ou ideais, como informações especializadas e estilos aprendidos de raciocínio.

Psicólogos que concebem a criação cultural em termos de uma ars combinatoria frequentemente recorrem a analogias com a “seleção natural” tal como descrita por Darwin na sua teoria da evolução. Segundo Simonton (1999), por exemplo, uma inovação bem-sucedida no domínio da arte ou da ciência seria fruto de um processo em duas etapas: a) a geração mais ou menos incontrolada de um vasto número de ideias (“variação aleatória”); b) uma impiedosa seleção individual e social daquelas ideias que se mostrem mais “aptas” segundo algum critério de juízo (“retenção seletiva”). Utilizando os instrumentos matemáticos do que ele chama de “historiometria”, Simonton encontra uma confirmação do seu modelo darwiniano da criatividade na alta correlação entre níveis de produtividade “bruta” e quantidade de trabalhos socialmente valorizados: indivíduos com maior produção ao longo de suas carreiras possuem, segundo ele, as maiores chances estatísticas de se saírem com criações historicamente significativas. Nesse sentido, os dados de Simonton parecem dar razão a autores como o poeta W. H. Auden – para o qual é “provável que, no curso da sua vida, um grande poeta escreva mais poemas ruins do que um poeta menor” – ou o químico Linus Pauling – que, perguntado sobre como fazia para gerar tantas boas ideias, respondeu que primeiro gerava um monte delas, depois descartava as que não eram boas (Robinson, 2010: xi).

As afirmações de Auden e Pauling são importantes para que combatamos as mitologias do processo criativo como inspiração inefável e espontaneidade miraculosa. No entanto, elas próprias tendem a simplificar as coisas. Como veremos em outro texto dessa série, o mesmo acontece com as analogias darwinistas de Simonton. Seja como for, o modelo é útil porque suas duas etapas lembram, uma vez mais, a dialética entre loucura e método: a inventividade desregrada e a imaginação lúdica favorecem a produção de combinações ideativas originais e surpreendentes, enquanto a avaliação rigorosa serve para selecionar quais dessas combinações têm valor.

 Indivíduo criador e contexto social

Segundo uma concepção tradicional da criatividade, os ingredientes de originalidade e valor que se combinam na obra artística ou científica emanariam de fontes inteiramente distintas. Por um lado, a novidade da obra seria uma expressão individualíssima da subjetividade criadora, não maculada pelo seu contexto social. Por outro lado, a esse contexto caberia apenas a avaliação crítica dos produtos originais gerados pelos indivíduos criativos, isto é, a aprovação ou a rejeição de suas obras. Submetidas ao crivo de uma coletividade de receptores e juízes, tais obras seriam, de acordo com seus critérios particulares de avaliação, incorporadas ao patrimônio coletivo ou, ao contrário, lançadas para o refugo da história. Na longa carreira das reflexões sobre criatividade, o psicólogo e filósofo William James se destacou entre os defensores dessa visão dualista. Para ele, há uma separação nítida entre a criatividade como atributo exclusivamente individual e o julgamento do valor das criações como atributo exclusivamente coletivo:

A evolução social é a resultante da interação de dois fatores inteiramente distintos: o indivíduo, derivando seus dons peculiares do jogo de forças psicológicas e infrassociais, mas portando todo o poder de iniciativa e originalidade em suas mãos; e, em segundo lugar, o ambiente social, com seu poder de adotar ou rejeitar tanto ele como seus dons” (James, 2007: 232; grifos meus).

Ainda que haja alguma dose de verdade na concepção de James, outros estudos revelam um retrato infinitamente mais complexo e ambíguo da relação entre indivíduos criadores e seus ambientes socioculturais. Para começo de conversa, um naco de sociologia já indica que as produções originais de uma artista ou cientista jamais são intocadas por quaisquer influências sociais. Ao contrário, uma das razões que levam à consagração social de uma obra criativa é seu reconhecimento como um acréscimo diferencial a um estoque historicamente acumulado de produções. É praticamente impossível gerar aquele acréscimo diferencial sem que se parta de um conhecimento substancial deste estoque. Apesar do que diz James, na relação entre a criatividade individual e o contexto social, o último não pode ser visto apenas como restritivo, mas também como capacitador.

É nesse contexto, afinal de contas, que os criadores encontram os recursos cognitivos, práticos e expressivos que utilizarão na geração de suas obras originais. Os apoios sociais ao trabalho criativo individual podem advir de oportunidades externas, como, por exemplo, as estruturas de suporte e incentivo à originalidade artística oferecidas por pequenos grupos, a despeito da indiferença ou hostilidade enfrentadas por eles diante de um ambiente social mais amplo (uma vez mais, o “Salão dos Recusados” instituído pelos pintores impressionistas no século XIX serve de ilustração didática). Mas é claro que aqueles apoios sociais também são internalizados na própria subjetividade dos criadores. Este é o caso, por exemplo, do uso espontâneo que uma cientista individual faz de teorias, métodos e dados duramente colhidos por uma comunidade científica ao longo da história de uma disciplina. Graças ao seu aprendizado dos resultados acumulados por gerações anteriores de cientistas, ela não precisa refazer todo o percurso histórico de sua ciência por conta própria e pode, assim, avançar na exploração do desconhecido, vendo mais longe ao “subir nos ombros de gigantes” que a precederam. De um modo ou de outro, a importância de um contexto social propício à criatividade é tornada óbvia pela concentração desproporcional de inovadores geniais em certos cenários sócio-históricos: filósofos na Atenas do século IV a.C, pintores e escultores na Itália da Renascença, dramaturgos na Inglaterra elisabetana, compositores na Viena dos séculos XVIII e XIX etc. Um exemplo igualmente óbvio, mas bem menos inocente, do peso de fatores socioculturais na geração da “genialidade” intelectual e artística é o fato de que as listagens-padrão de gênios (Shakespeare e Goethe, Mozart e Beethoven, Newton e Einstein etc.) apresentam, devido aos efeitos históricos do racismo e da misoginia, uma concentração desproporcional de homens brancos. O assunto é importante demais para ser tratado de passagem, então deixemo-lo para outro texto.

“Grandes ‘homens’” ou “espírito do tempo”?

Tais concentrações de gênios em certos contextos socioculturais devem ser tidas como coincidências milagrosas? Ou, ao contrário, dão prova de que Sócrates e Platão, Da Vinci e Michelangelo ou Mozart e Beethoven são “encarnações” ou “personificações” individuais do “espírito do tempo” (Zeitgeist)? A história da teoria sociológica é marcada pelo confronto entre abordagens que acentuam os poderes criativos do indivíduo em face da sociedade, de um lado, e abordagens que enfatizam os poderes condicionantes da sociedade sobre o indivíduo, de outro. No entanto, ao menos desde o chamado “novo movimento teórico” (Alexander, 1987), as ciências sociais têm sido caracterizadas por tentativas de síntese entre os dois tipos de abordagem. Essas perspectivas sintéticas, como a teoria da prática de Bourdieu e a teoria da estruturação de Giddens, buscam unificar as competências criativas do agente individual e os poderes condicionantes das estruturas coletivas em um mesmo retrato.

Pois bem: o problema da relação indivíduo/sociedade – ou agente/estrutura – não é apenas uma questão teórica abstrata, mas tem de ser enfrentado, implícita ou explicitamente, na pesquisa de qualquer fenômeno social particular. Não surpreende, portanto, que o dualismo entre “individualismo voluntarista” e “determinismo coletivista” também ganhe corpo em linhas de pesquisa empírica. Com efeito, o contraste é particularmente intenso nos estudos da “genialidade” intelectual e artística, isto é, de criadores excepcionais na história da arte e da ciência. De um lado, temos o retrato clássico de criadores geniais como “grandes indivíduos” ou, na habitual expressão androcêntrica, “grandes homens” cujos poderes criativos não deveriam nada aos contextos sociais em que estavam imersos – contextos nos quais eles (sic) só teriam encontrado, ao contrário, pobreza de estímulos ou resistência ignorante às suas inovações. Tal visão, que provavelmente permanece hegemônica no senso comum, foi sistematizada por Thomas Carlyle (1841) e chegou a exercer certo fascínio sobre nosso querido herói Max Weber (Gerth; Mills, 1982: 71). Por outro lado, devemos a autores como o antropólogo Alfred Kroeber (2013 [1917]) um questionamento pioneiro da mitologia simplória do criador que paira completamente acima da sociedade. Contra tal mitologia, Kroeber mostrou o papel decisivo de circunstâncias socioculturais na produção de inovações intelectuais e artísticas. Muito preocupado em torcer o bastão para o outro extremo, entretanto, o antiindividualismo de Kroeber pareceu levá-lo a transferir a verdadeira ação criativa a uma coletividade dotada de vida e consciência próprias. No seu retrato, descobertas científicas e inovações artísticas tendem a resultar do “espírito do tempo” como tal, com os indivíduos criadores sendo tomados como meros “veículos” ou “personificações” do desenvolvimento histórico e cultural. Contra essa visão, assim como fizeram os heróis do “novo movimento teórico”, devemos dizer à alternativa entre hiperindividualismo e hipercoletivismo no estudo da criatividade intelectual e artística: nem oito nem oitenta. Vejamos um exemplo.

O teste dos múltiplos

Uma das melhores ilustrações da importância do contexto sociocultural para a criatividade é o fenômeno comum das descobertas e invenções múltiplas na história da ciência e da tecnologia: dois ou mais inventores ou cientistas, trabalhando independentemente, chegam à mesma ideia. Lá pelo final dos anos 1850, por exemplo, Alfred Russel Wallace havia formulado, por conta própria, o essencial da teoria da evolução via seleção natural a que também tinha chegado Charles Darwin. O cálculo diferencial e integral (ou simplesmente cálculo, para os íntimos) foi desenvolvido independentemente por Leibniz e Newton, embora o último tenha acusado injustamente o primeiro de plágio. A inventora Elisha Grey e o inventor Alexander Graham Bell apareceram no escritório de patentes para o registro de seus projetos de telefone no mesmo exato dia (Bell ganhou os direitos exclusivos da invenção por ter lá chegado duas horas antes). Em torno do ano de 1900, os botânicos Hugo de Vries, Carl Correns e Erich von Tschermak, que trabalhavam em países diferentes sem saberem uns dos outros, depararam com as leis da hereditariedade…apenas para descobrirem posteriormente que estas leis haviam sido divulgadas para um público indiferente por um obscuro monge chamado Gregor Mendel em 1866.

O fenômeno dos “múltiplos” na história da ciência e da tecnologia sugere que, em tal ou qual momento do desenvolvimento intelectual de um ramo científico ou tecnológico, uma nova ideia circula no “ar”, pronta para ser colhida por um punhado de inteligências antenadas. Kroeber vai mais além, sustentando que o estado do Zeitgeist não é apenas uma condição necessária para que este ou aquele indivíduo chegue eventualmente à sua descoberta ou invenção, mas também a condição suficiente que tornaria tal descoberta/invenção simplesmente inevitável naquele ponto preciso do tempo. Buscando explicar como a genética mendeliana foi ignorada durante mais de trinta anos, antes de ser espetacularmente descoberta na virada para o século XX, Kroeber afirma que “a hereditariedade mendeliana não data de 1865 [quando Mendel publicou seus resultados]. Ela foi descoberta em 1900 porque apenas então podia ser descoberta e porque apenas então teria infalivelmente de ser descoberta” (2013: 7; grifos meus).

Então, o hipercoletivismo ganhou a disputa analítica? A bem da verdade, o grande antropólogo carrega demais nas tintas. Quando nos aproximamos dos “múltiplos” na história da ciência e da tecnologia, as coisas se revelam mais complexas e nuançadas. Para começo de conversa, vários dos exemplos de múltiplos não são descobertas ou invenções efetivamente idênticas. A versão newtoniana do cálculo, por exemplo, era um bocado diferente daquela de Leibniz, sendo esta última a que serviu de base para a disciplina dada nas universidades. Wallace e Darwin, por seu turno, não concordavam a respeito de todos os pontos da teoria da evolução: diferentemente do segundo, o primeiro negava, por exemplo, a possibilidade de explicação evolucionária do surgimento do cérebro humano, já que a inteligência do homo sapiens se estendia, segundo ele, para muito além do que seria suficiente para a sobrevivência da espécie.

Ademais, um dos motivos pelos quais os “múltiplos” são frequentemente identificados na história da ciência e da tecnologia, mas não da arte, é nossa propensão a utilizar categorias bem mais inclusivas para tratar das primeiras. Ninguém além de Beethoven escreveu a “Pastoral”, é certo, mas, se formos meticulosos, devemos concluir também que ninguém além de Newton escreveu “Princípios matemáticos da filosofia natural”. As formulações físico-matemáticas de Newton possuem um caráter bem mais abstrato e impessoal do que as composições de Beethoven, de fato, mas as marcas da singularidade individual não estão ausentes das ciências exatas. Ludwig Boltzmann afirmou que “um matemático reconhecerá Cauchy, Gauss, Jacobi ou Helmholtz, após ler algumas páginas, do mesmo modo que músicos reconhecem, desde os primeiros compassos, Mozart, Beethoven ou Schubert” (apud Simonton, 1999: 179). Com efeito, o já citado Newton enviou, certa feita, sua solução a um desafio lançado por Johann Bernoulli à comunidade europeia de matemáticos. Embora a resposta de Newton fosse anônima, Bernoulli não teve problemas em inferir a identidade do solucionador: “reconhecemos o leão pela sua garra” (idem).

Como os exemplos indicam, levar em conta os condicionamentos socioculturais da criatividade na arte e na ciência implica questionar a mitologia dos “grandes homens”, mas sem deslizar para o ventriloquismo coletivista, isto é, para a suposição de que iniciativas individuais são meros veículos da marcha inexorável de algum “espírito do tempo”.

Solidão e sociedade

A formação de um cientista ou artista envolve uma internalização de informações, técnicas e valores previamente formulados no seu domínio: os raciocínios bem-sucedidos ao longo da história da matemática são estudados nos manuais, a ponto de se tornarem hábitos mentais do matemático profissional; a filósofa que acumula milhares de horas de leitura da tradição filosófica passa a pensar espontaneamente segundo os vocabulários dessa tradição; a pintora e o escultor que reconstroem os procedimentos de grandes mestres estão buscando transformar a sensibilidade artística destes em memória muscular. Graças a esses processos de interiorização da perícia acumulada em um domínio simbólico (pintura, filosofia, matemática etc.), a dialética entre inventividade e regra, loucura e método, também se interioriza na própria psique do indivíduo criador.

A presença dos feitos acumulados pelo domínio de criação na subjetividade do criador não se dá apenas na forma de hábitos adquiridos, estas disposições mentais e corpóreas que, para além do conhecimento explícito, caracterizam, por exemplo, o “ofício do sociólogo” (como disse o outro), mas também os ofícios da bióloga, da filósofa, do escultor etc. A pintora que trabalha solitariamente no seu atelier, assim como o acadêmico que escreve um artigo no seu escritório, não estão imaginativamente sozinhos, mas se inserem em uma “comunidade imaginada” de colegas, colaboradores, rivais, mentores, ouvintes etc. (o termo entre aspas é tomado de empréstimo a Benedict Anderson, que o empregou a respeito de nacionalidades [1987]). Nesse sentido, longe de se resumir a uma psicologia de atos privatíssimos de elaboração criativa, a análise da criatividade pode se desenvolver como uma espécie de sociologia da mente. Tal abordagem capturaria os modos pelos quais a subjetividade criadora dialoga continuamente com uma comunidade imaginada de predecessores, contemporâneos e sucessores cujo julgamento é considerado implícita ou explicitamente. Vandenberghe captou bem essa espécie de simulação intrasubjetiva da intersubjetividade:

Todo pensamento é essencialmente dialógico. Mesmo quando estamos escrevendo textos, estamos sempre pensando e falando com outros. Sejam tais outros nossos predecessores, contemporâneos ou sucessores, para usar as tipificações de Schütz, sejam eles escritores do passado, leitores do futuro ou um pouco de ambos, como é o caso do escritor que lê o que escreve enquanto pensa, eles estão sempre lá, de algum modo, como membros de uma audiência virtual, potencialmente universal, à qual nos dirigimos em pensamento quando escrevemos” (Vandenberghe, 2014: 100).

O percurso confuso da descoberta, a ordem límpida da justificação: mote para estudos futuros  

Vale a pena relembrar, nesse ponto, a distinção clássica que a epistemologia estabeleceu entre “contexto da justificação” e “contexto da descoberta”, distinção que reconhece a diferença entre a ciência feita e a ciência em seu processo de feitura (Salmon, 1998: 391). Como notaram cientistas autoconscientes como Michael Faraday (sim, o cara da gaiola), a ordem lógica com que descobertas científicas são apresentadas ao mundo em livros ou artigos esconde quão tortuosos e repletos de erros foram os caminhos que resultaram nelas (Simonton, 1999: 27-28). O ponto pode ser estendido para além da ciência: por detrás da harmonia precisa de um teorema matemático, uma composição sinfônica ou um poema, se oculta um drama confuso que envolve percursos abandonados, ilusões perdidas e esperanças destroçadas, mas também insights intuitivos e inspirações repentinas.

Em um notável estudo chamado Cadernos da mente (1985), a psicóloga Vera John-Steiner se debruça em detalhe sobre uma dimensão crucial do caminho complexo que vai da “descoberta” à “justificação”: a tradução do pensamento privado em expressão pública. Einstein, por exemplo, afirmou que fazia vasto uso de imagens na construção do seu pensamento, o qual, somente em uma etapa mais avançada, era então elaborado e testado pelos instrumentos disciplinares da física e da matemática:

As palavras da linguagem, do modo como são escritas ou faladas, não parecem desempenhar qualquer papel nos meus mecanismos de pensamento. As entidades físicas que parecem servir como elementos no pensamento são certos sinais e imagens mais ou menos claros que podem ser voluntariamente reproduzidos e combinados”(apud John-Steiner, 1985: 4).

Paul Valéry também captou a loucura por trás do método, a “relatividade sob a aparente perfeição”, em seu estudo sobre Leonardo da Vinci, gênio paradigmático e prato cheio para quem explora os paralelismos entre arte e ciência. Graças aos cadernos de Leonardo, Valéry descobriu que, tal qual outro criador famoso, Da Vinci também escrevia certo por linhas tortas:

“…conquanto pouquíssimos autores tenham a coragem de dizer como formaram a sua obra, creio que já não existem muitos que se tenham arriscado a sabê-lo. Uma pesquisa desse tipo começa pelo abandono penoso das noções de glória e dos epítetos laudatórios…Leva a descobrir a relatividade sob a aparente perfeição. É necessária para não fazer crer que os espíritos são tão profundamente diferentes quanto seus produtos os fazem parecer. Certos trabalhos das ciências, por exemplo, e os da matemática em particular, apresentam uma tal limpidez em sua armação que poderíamos dizer que são obras de ninguém. Têm algo de inumano. Essa disposição…fez supor uma distância tão grande entre determinados estudos, como as ciências e as artes, que os espíritos originários foram dele totalmente separados na opinião pública e exatamente na mesma medida em que os resultados de seus trabalhos pareciam sê-lo. (…) [Na verdade] Interiormente, existe um drama. Drama, aventuras, agitações…No mais das vezes esse drama se perde. (…) No entanto, conservamos os manuscritos de Leonardo e as ilustres notas de Pascal. Esses fragmentos…fazem-nos adivinhar por quais sobressaltos de pensamento, por quais bizarras introduções dos acontecimentos humanos e das sensações contínuas, depois de quais imensos minutos de languidez são reveladas aos homens as sombras de suas obras futuras, os fantasmas que as precedem” (Valéry, 1998: 17-21).

Drama, aventuras, agitações, fantasmas…Temas interessantes para uma série de estudos? Espero que sim. Nos falamos depois.

Referências

ANDERSON, Benedict. Imagined communities. Londres/Nova Iorque: Verso, 1987.

CARLYLE, Thomas. On heroes, hero-worship and the heroic in history. London, James Fraser, 1841.

CASTRO, Ruy. O melhor do mau humor. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

COOLEY, Charles Horton. “Genius, fame and the comparison of races”. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 9 (1897), 1-42.

GERTH, Hans; MILLS, C. Wright. “Introdução: o homem e sua obra”. In: WEBER, M. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.

GLADWELL, Malcolm. David and Goliath. New York: Little Brown, 2015.

JAMES, William. The will to believe and other essays in popular philosophy. New York: Cosimo, 2007.

JOHN-STEINER, V. Notebooks of the mind: explorations of thinking. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1985.

KROEBER, Alfred. “The superorganic”. Savage Minds Occasional Papers, 1.

ROBINSON, Andrew. Sudden genius? The gradual path to creative breakthroughs. Oxford: Oxford University Press, 2010.

SALMON, Wesley. Causality and explanation. New York/Oxford, Oxford University Press, 1998.

SIMONTON, Dean Keith. Origins of genius. New York: New York University Press, 1999.

________“Expertise, competence, and creative ability: the perplexing complexities”. In: Sternberg, Robert; Grigorienko, Elena. The psychology of abilities, competencies, and expertise. Cambridge, Cambridge University Press, 2003.

________”Creative genius, knowledge, and reason: the lives and works of eminent creators”. In: KAUFMAN, J.C.; BAER, J. (Org.). Creativity and reason in cognitive development. New York, Cambridge University Press, 2006.

________Genius 101. New York: Springer, 2009.

VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo Da Vinci. São Paulo, Editora 34, 1998.

VANDENBERGHE, Frédéric. What’s critical about critical realism: essays in reconstructive social theory. London: Routledge, 2014.

5 comentários em “O método na loucura (1): uma série sobre ambivalências na psicologia da criatividade em arte e ciência, por Gabriel Peters

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